Desfile histórico da Beija Flor em 1989. Foto: reprodução/redes sociais

Quem, como eu, teve o privilégio de viver no Rio de Janeiro nos anos 1980 e 1990 teve a chance de testemunhar um dos períodos mais ricos do carnaval carioca. Pelas ruas dos subúrbios, os tradicionais bate-bolas, os blocos e as matinês infantis dividiam a atenção com os grandes desfiles que faziam da Marquês de Sapucaí um cenário inigualável de folia. E foi na passagem entre essas duas décadas que aconteceu uma das mais importantes e icônicas disputas entre as agremiações do Rio: o Carnaval de 1989.

Para mim, aqueles dias tinham um gosto especial. Costumava brincar nos blocos de rua de Niterói ou nos bailinhos para crianças, as matinês, do Clube Portuguesa, da Ilha do Governador. Da janela do predinho em que morava, via os bate-bolas desfilarem, pela rua de trás, com seus macacões coloridos e máscaras assustadoras, batendo bolas de plástico no chão e apitando para chamar a molecada.

Na TV, a disputa de atrações também era acirrada. A Rede Globo transmitia os desfiles das escolas de samba dos dois grupos mais importantes. A extinta Manchete costumava ficar com as escolas menores, com os bailes mais “quentes” e despudorados da cidade e com os desfiles de fantasia do Hotel Glória, uma das minhas programações favoritas.

Ficava encantada e me divertia com as fantasias — dividas nas categorias de “originalidade masculina/feminina” e “luxo masculino/feminino” — e com os seus nomes que variavam entre algo como “A Festa da Dona Baratinha em Madagascar” e “A Corte de Luiz 15 no Apogeu do Carnaval”. E, claro, havia sempre a menção ao eterno “hors concours” Clóvis Bornay, ex-carnavalesco de grandes escolas como Salgueiro, Portela e Mocidade e que brilhou no filme Terra em Transe, de Glauber Rocha.

Mas, talvez os desfiles das escolas de samba de 1989 tenham se tornado algumas das minhas mais vivas e saborosas lembranças daqueles anos. E não só para mim. Seu desenrolar fez com que aquele campeonato passasse a merecer uma categoria à parte na folia do Rei Momo. É como se não fosse mais um, mas “o” Carnaval de 1989.

Naquele momento, o Brasil respirava os ares da liberdade democrática, conquistada poucos anos antes quando a ditadura militar deu lugar ao primeiro governo civil, eleito ainda indiretamente. Em 1989, o país se preparava para viver sua primeira eleição realmente direta, uma das mais importantes e simbólicas de todos os tempos. Portanto, aquele foi um ano e tanto. E o Carnaval exprimiu isso já nos seus primeiros meses.

Liberdade, luxo e lixo

Numa época sem internet, os sambas-enredo ficavam conhecidos por tocarem nas principais rádios AM e FM do Rio. Também havia LPs e fitas cassete à venda e em alguns lugares eram distribuídos livretos onde podíamos aprender as letras dos sambas e compreender o enredo.

Eram comuns também as entrevistas, em rádio e TV, com carnavalescos, intérpretes e “bicheiros” patronos das escolas, que naqueles tempos, eram adorados.

Porém, 1989 teve um sabor a mais. As escolas vieram com sambas extremamente envolventes e com temas provocantes. Eu não tinha, naquele momento, ideia de seus significados, o que comecei a compreender anos mais tarde.

O que eu queria mesmo era passar madrugada a dentro vendo os desfiles, ouvindo meu tio sempre deslumbrado com sua escola, Salgueiro — e criticando a Portela e a Mangueira —, enquanto minha mãe, meu pai e eu ficávamos na torcida pelas nossas agremiações: Vila Isabel, onde nasci, e Ilha do Governador, onde morávamos. Nem a apuração me escapava e, por vezes, eu até me aventurava a preencher a planilha que os jornais publicavam.

Foi um carnaval tão forte que ainda hoje ecoa em minhas lembranças. Como esquecer um dos mais belos refrões de todos os tempos, a cargo da campeã Imperatriz Leopoldinense, que soava como um recado contra os tempos sombrios de outrora?

Liberdade, liberdade!
Abra as asas sobre nós
E que a voz da igualdade
Seja sempre a nossa voz

O samba — escrito por Niltinho Tristeza, Preto Joia, Vicentinho e Jurandir — homenageava o centenário da República e o desfile trazia o luxo típico da Imperatriz e o requinte que marcava o trabalho do carnavalesco Max Lopes, o “Mago das Cores”, morto em 2023. Não à toa, a escola de Ramos ganhou “dez, nota dez” em todos os quesitos, conquistando seu terceiro título.

A sorte da Imperatriz foi o azar da Portela, que não quis saber daquele enredo e acabou terminando em sexto. “‘Liberdade, liberdade! Abra as asas sobre nós’, no meu entender, tinha muito a ver com a Portela. Ofereci à escola porque a águia é o símbolo da liberdade. Mas o tema foi absolutamente bem recebido pela Imperatriz, que tem uma abordagem cultural muito forte, um de seus traços marcantes, e me deu ampla liberdade para trabalhar”, contou Max Lopes.

Mas, apesar do samba arrebatador e do desfile impecável, quem acabou roubando a cena naquele Reinado de Momo foi a segunda colocada, a Beija-Flor de Nilópolis, com o tema “Ratos e urubus, larguem a minha fantasia”.

A letra — composta por Betinho, Glyvaldo, Zé Maria e Osmar e interpretado por Neguinho da Beija-Flor —, por si só já era um espetáculo.

Leba laro, ô, ô, ô

Ebo lebará, laiá, laiá, ô

Leba laro, ô, ô, ô

Ebo lebará, laiá, laiá, ô

Reluziu, é ouro ou lata

Formou a grande confusão

Qual areia na farofa

É o luxo e a pobreza
No meu mundo de ilusão

Xepa, de lá pra cá xepei

Sou na vida um mendigo

Da folia, eu sou rei

Xepa, de lá pra cá xepei

Sou na vida um mendigo

Da folia, eu sou rei

Sai do lixo a nobreza

Euforia que consome

Se ficar, o rato pega

Se cair, urubu come (…)

Polêmica e redenção

Mas, havia muito mais. Com muita criatividade e a força da comunidade, a escola reinou absoluta na avenida, sob a batuta de outro grande carnavalesco: Joãosinho Trinta, morto em 2011.

“Quando todo mundo reclamava que ele fazia um desfile ensaiadinho e luxuoso, o maranhense botou na Sapucaí um bloco de mendigos ao redor do Cristo na favela. Foi há 30 anos. Perdeu, mas, assim como a seleção de 1982, entrou para a História, conformado pela certeza malandra de que ganhar sempre é uma derrota”, escreveu o jornalista Joaquim Ferreira dos Santos no O Globo, em 2019.

Um dos motores daquele desfile, de fato, foi a polêmica. Dias antes de entrar na avenida, a Beija-Flor teve de acatar decisão da Justiça que, a pedido da Igreja Católica, proibiu o uso da imagem do Cristo Mendigo, um dos principais trunfos da escola.

E se a ideia inicial era punir a agremiação por aquela “profanação”, o resultado foi o contrário. A alegoria atravessou a Marques de Sapucaí sob um imenso saco de lixo preto e uma faixa onde se lia “Mesmo proibido, olhai por nós!”, marcando definitivamente a história dos carnavais.

A escola trazia ainda um enorme cartaz com a mensagem: “Atenção mendigos, desocupados, pivetes, meretrizes, loucos, profetas, esfomeados e povo de rua: tirem dos lixos deste imenso país restos de luxos. Façam suas fantasias e venham participar deste grandioso ‘bal masque’ (baile de máscaras)’”.

Com a “ralé”, os vagabundos e os moradores de rua tomando a avenida para brincar o Carnaval em meio a roupas rasgadas, pneus e tampas de privadas e Joãosinho de gari, a escola fazia uma crítica contundente à histórica desigualdade social brasileira, à vida de tantos que dependiam do lixo, enquanto cutucava, com deboche, a elite cafona de sempre que se esbalda no luxo, lixando-se para o povo.

Aqui, vale uma observação para além da folia. Naqueles tempos, a situação era especialmente trágica para a população: a inflação em janeiro de 1989 foi de 70% e, no ano, chegou a impressionantes 1.782,90%, corroendo a pouca renda do trabalhador brasileiro e deixando um rastro de fome e miséria. Lembro-me de, muitas vezes, ir ao mercado com minha mãe e vê-la pegar rapidamente os produtos antes de o funcionário remarcar os preços com a célebre maquininha de mão que só quem viu de perto sabe o barulho que fazia.

Voltando ao Carnaval, o desfile deixou a todos embasbacados. O portelense Paulinho da Viola, na condição de comentarista da Globo, afirmou: “Estou vendo algo criativo, surpreendente e novo. Só Joãosinho Trinta e a Beija-Flor poderiam fazer um enredo como esse. Uma crítica feroz, ao mesmo tempo uma autocrítica, um delírio onde a razão está presente. […] É um marco na história do carnaval e das escolas de samba.”

Apesar de conquistar público e crítica, a escola terminou em segundo. Ela empatou com a Imperatriz e, pelo regulamento de então, as menores notas, descartadas na primeira contagem, voltariam a valer para um eventual desempate. Com notas 9 em samba-enredo, evolução e conjunto, o critério acabou premiando a escola de Ramos.

Uma das críticas ao resultado, até hoje não engolido por muita gente, era a de que embora tenha feito um desfile tecnicamente perfeito, a Imperatriz continuava em sua “zona de conforto tradicional”, enquanto a Beija-Flor estava simplesmente causando uma revolução estética e temática.

Autor do livro “Por que perdeu? — Dez desfiles derrotados que fizeram História”, o jornalista Marcelo Mello lembra que a Beija-Flor era uma unanimidade, como em poucos momentos houvera na história dos carnavais cariocas. E arrematou: “Tem um ditado que diz que a História é sempre contada pelos vencedores. Mas grandes desfiles que perderam têm as suas particularidades. Se o desfile passou pelo filtro da memória, é porque ele tem algo de especial”.

É um critério justo. Não me importei com a terceira colocação da União da Ilha, com seu samba também inesquecível que dizia “eu vou tomar um porre de felicidade; vou sacudir, eu vou zoar toda cidade”. Na minha memória — e certamente na de milhares de brasileiros —, aquele desfile da Beija-Flor nunca deixou de ressoar, em meio aos gritos de “é campeã” vindos das arquibancadas.