Um “Auto de Natal” que denuncia a violência e a miséria
Morte e Vida Severina (Auto de Natal Pernambucano) é uma obra com diversas camadas de leitura e interpretação. A peça de João Cabral de Melo Neto é um poema longo construído em forma de auto dramático, gênero teatral de origem medieval surgido na Espanha, no século 12, e popularizado em nosso idioma pelo português Gil Vicente, em obras como o Auto da Barca do Inferno, já no período renascentista.
O auto é uma peça construída em um único ato, de temática religiosa ou profana, que faz uso da alegoria, da música, do canto e da dança. Em geral escritos em versos curtos, métrica de redondilha e linguagem simples, os autos muitas vezes têm elementos cômicos ou intenção religiosa ou moralizante – e os seus personagens podem representar alegorias de conceitos como os vícios e as virtudes, ou ainda anjos, santos e demônios, conforme a teologia católica.
O poema de João Cabral de Melo Neto, que forma uma trilogia com O Rio e O Cão sem Plumas, pela temática social e regionalista, incorpora ainda a influência dos romances de cordel pernambucanos, que também utilizam a métrica de sete sílabas, em geral aplicada nas estrofes de quatro a oito versos, o caráter narrativo e a crítica de costumes, política e social. No caso da composição cabralina, que ele chama de “Auto de Natal Pernambucano”, porém, todas essas influências são trabalhadas de modo bastante pessoal.
O auto é dividido em 18 partes, ou cenas, os versos são agrupados em blocos sem divisão estrófica, com métricas de sete sílabas e distribuição livre das rimas. A peça é formada sobretudo por monólogos dramáticos, embora também haja diálogos com os personagens que o protagonista encontra pelo caminho.
Severino é um personagem alegórico. Conforme escreve Alfredo Bosi, em sua História Concisa da Literatura Brasileira, ele é “um homem do agreste, que vai em demanda do litoral e topa em cada parada com a morte, presença anônima e coletiva”. Ele é, portanto, um personagem coletivo, o retirante nordestino, já tematizado na pintura de Portinari e nos romances regionalistas de Graciliano Ramos.
Severino percorre uma jornada árida e encontra diversos outros tipos do sertão no meio do caminho, com quem estabelece diálogo, “até que no último pouso”, como escreve Alfredo Bosi, “lhe chega a nova do nascimento de um menino, signo de que algo resiste à constante negação da existência”. Esta criança, é claro, também é um personagem alegórico, que reforça o diálogo de Cabral com as peças medievais, embora, em seu caso, a religiosidade esteja presente de maneira enviesada, na forma da compaixão.
É uma peça de caráter social e político, de viés marxista, embora o sentido religioso também esteja presente – podemos vislumbrar a presença do sagrado no nascimento da criança, que representa a esperança de uma sociedade mais justa, mas também sugere um paralelo com o advento do Menino Jesus. Logo nos primeiros versos do poema, o protagonista Severino se apresenta ao público, não como um indivíduo diferente dos demais; pelo contrário, ele se mostra como um personagem coletivo.
Se no Cão sem Plumas e em O Rio João Cabral humaniza o Rio Capibaribe, atribuindo a ele voz e personalidade, por meio da prosopopeia, aqui em Morte e Vida Severina acontece o contrário: a desumanização do sujeito, como efeito da extrema miséria. “Severino” não é um nome, um indivíduo, mas milhões de retirantes pobres que atravessam as zonas áridas em busca do litoral, das cidades que possam oferecer condições mais dignas de existência, ou ao menos de sobrevivência.
Numa das cenas mais impactantes da peça, o retirante Severino encontra dois homens carregando um defunto numa rede, costume usual nas regiões mais pobres das cidades nordestinas, onde enterrar um morto em caixão de madeira constitui um luxo. O interlocutor de Severino nesta cena destaca o ofício do falecido, lavrador, numa região de caatinga seca; informa que a morte não foi morrida, mas matada em uma emboscada, em alusão aos jagunços contratados por fazendeiros locais para se apropriarem das terras dos pequenos produtores e imporem o seu domínio por cima da lei, inexistente nesses ermos.
O interlocutor, ou “irmão das almas”, informa ainda onde será enterrado o defunto, Toritama, local muito distante, diz que será de madrugada e que o falecido tem muita sorte de não ter de fazer o mesmo trajeto de volta, após o enterro. Severino junta-se ao pequeno cortejo fúnebre e põe-se a caminho com os seus novos companheiros de viagem.
Na casa a que o retirante chega, após longo trajeto, uma concentração de pessoas canta hinos para o defunto, enquanto um homem, do lado de fora, vai parodiando as palavras dos cantadores. Do ponto de vista da construção dramática, esta é uma cena musical, que segue a tradição dos autos medievais. O uso da redondilha nos autos, assim como nos romances de cordel, deve-se à extrema musicalidade desse verso, também empregado em muitas cantigas dos trovadores.
Após a cerimônia, Severino prossegue sua jornada, agora em busca de trabalho; encontra por acaso com uma mulher à janela, com quem dialoga, recordando a sua habilidade no plantio e no pastoreio, habilidade essa inútil na terra em que ele pisa, lugar abandonado por Deus. A mulher, por sua vez, sobrevive como rezadeira, num espaço em que acontecem tantas mortes; orar pelos falecidos, aqui, é um ofício que sempre tem procura. Por isso mesmo, o título da peça de Cabral é emblemático: Morte e Vida Severina.
Sem dúvida, esta é a obra mais conhecida de João Cabral de Melo Neto, por ser a mais comunicativa, e foi encenada em 1965 no Teatro da PUC de São Paulo, com música de Chico Buarque. O poema também foi adaptado para cinema, minissérie de televisão, história em quadrinhos e até desenho animado.
Numa época em que o Brasil ainda sofre com os flagelos do clima e do agronegócio, que provoca a desertificação dos solos, pela prática da monocultura e da pecuária extensiva, a degradação do meio ambiente e da atmosfera, a exploração brutal dos trabalhadores rurais e ainda impõe o seu poder político nas regiões mais pobres do país por meio da corrupção e da violência, a peça de João Cabral de Melo Neto permanece tristemente atual.
Edição: André Cintra