Tanques de Israel se preparam para cruzar a fronteira com a Síria à altura da aldeia de Majdal Shams | Foto: Jafaa Marrey/AFP

Depois de 13 dias de blitzkrieg, os terroristas – a classificação é do Conselho de Segurança da ONU – da Hayat Tahrir al-Sham (HTS), aliás, ex-Frente Al Nusra e ex-Al Qaeda, e forças similares tomaram Damasco, após ocuparem sucessivamente Aleppo, Hama e Homs, e anunciaram ter assumido o poder na Síria.

Não houve combates em Damasco. O primeiro-ministro sírio Mohamed Ghazi al-Jalali, que continua na capital síria, anunciou que está pronto para conduzir a “transferência pacífica de poder”, enquanto o presidente deposto Bashar al Assad deixou o país. Segundo a Reuters, o avião que levava Assad pode ter sido abatido. A ONU anunciou que está reduzindo seu pessoal na Síria “temporariamente”.

Al Jalali declarou-se ainda disposto a colaborar com a “oposição armada” e disse que estende a mão a “qualquer sírio que se interesse pelo país para preservar suas instituições” e até saudou uma “nova era de pluralismo”. Mas sem explicar como isso rima com “salafismo”, a versão medieval do islamismo professada sob patrocínio norte-americano.

As milícias fundamentalistas islâmicas que haviam sido confinadas em 2020 na província de Idlib, no noroeste, fronteira com a Turquia, em acordo de “desescalada” negociado por Moscou, Ancara e Teerã, iniciaram sua ofensiva, com uso de drones de última geração e guiados por satélites norte-americanos, no dia 27 de outubro, tomando em três dias a segunda maior cidade síria, Aleppo, que jamais havia caído por completo durante o conflito.

Ocorreram combates com o exército sírio em Hama e Homs, seguidos da sucessiva retirada das tropas governistas, o que escancarou o caminho até à capital, a apenas 150 km, e para a região do litoral, predominantemente alauita, a vertente xiita síria.

Coincidentemente, a blitzkrieg [termo com que ficou conhecida a tática nazista de guerra relâmpago] salafista começou no mesmo dia em que teve início a trégua entre Israel e Líbano. A propósito, a assim chamada ‘guerra civil síria’ teve início nos últimos dias de 2011, mesmo ano da derrubada, pelos fundamentalistas a soldo da Otan, do governo Kadhafi, na Líbia, que levou o país à condição atual de Estado falido.

Como registrou o jornal russo Komsomolskaya Pravda, o ataque à Síria “foi coordenado, vindo de todas as direções”. No leste, as milícias curdas instrumentalizadas por Washington ocuparam Deir Ezzor e a totalidade da área petrolífera síria no leste do país. O Exército Sírio Livre, inteiramente sob auspícios de Washington, tomou a milenar Palmyra. No sul, bandos que se albergavam sob o guarda-chuva da base norte-americana de Tanf, avançaram sobre Daraa. No Golã, por ordem direta de Netanyahu, as forças israelenses cruzaram a fronteira e invadiram a linha de separação em Quneitra, sob o pretexto do risco de chegada de jihadistas.

Na véspera, em Doha, ministros das Relações Exteriores da Rússia, Turquia, Irã, Arábia Saudita, Egito, Iraque, Qatar e Jordânia, haviam se reunido sobre a crise na Síria e instado a um cessar-fogo, negociação política e respeito à unidade e integridade territorial da Síria.

Neste domingo (8), a chancelaria do Qatar afirmou que “os países árabes buscarão evitar a ameaça de uma guerra civil síria reacendida iniciando um diálogo aberto com todas as forças no terreno para garantir que qualquer transição seja inclusiva para todos os sírios”. Os representantes árabes se reuniram novamente em Doha para avaliar o colapso do regime de Al Assad.

Segundo o porta-voz Majed al Ansari, os países árabes estavam “agradecidos pelos combates muito limitados” que precederam a derrubada de Assad, e que é preciso atuar agora “antes que qualquer combate possa eclodir entre as partes no terreno”.

Ele acrescentou que “estamos encorajados que as instituições governamentais mantenham suas funções”, assinalando que não havia necessidade de derramamento de sangue e chamou a “um diálogo aberto” envolvendo “todas as partes”.

Lembrando do que ocorreu na Líbia, e defendendo a “transição para um Estado viável”, Al Ansari admitiu que “existe a possibilidade de a Síria se tornar um Estado falido”.

A chancelaria russa, em comunicado sobre os “dramáticos acontecimentos na Síria”, após registrar que Assad “decidiu renunciar à presidência e deixar o país, dando instruções para a transferência pacífica de poder”, instou “todas as partes envolvidas a renunciarem ao uso da violência e a resolverem todas as questões de governação através de meios políticos”.

“Pedimos respeito pelas opiniões de todas as forças etnoculturais na sociedade síria e apoiamos os esforços para estabelecer um processo político inclusivo, baseado na resolução 2254, adotada por unanimidade pelo Conselho de Segurança da ONU”, afirmou comunicado.

Já o regime genocida de Netanyahu, ao invadir a zona de separação de forças no Golã, em Quneitra, anunciou que não respeita mais o acordo de 1974, sob patrocínio da ONU. Segundo fontes em Quneitra, tanques israelenses foram posicionadas em aldeias perto de Quneitra, como Kudna e Hader, e novas trincheiras foram impostas na área. Israel também voltou a bombardear as imediações do aeroporto de Damasco.

Quanto ao papel de Washington na guerra civil na Síria, não há o que discutir, conforme apontado pelo jornalista investigativo Seymour Hersh, que denunciou as “ratlines” da CIA/Pentágono, usando os arsenais capturados da Líbia, para abastecer seus “jihadistas” – não sem contratempos, como a escandalosa morte do embaixador norte-americano na Líbia, aos tempos de Hillary Clinton à frente do Departamento de Estado.

Há ainda o testemunho diante do Congresso dos EUA há quase uma década, de que, até aquele momento, mais de meio bilhão de dólares haviam sido gastos na “assistência” às “forças rebeldes sírias”.

Sabe-se, ainda, de acordo com a agência de notícias russa RIA Novosti, que “conselheiros” neonazis ucranianos “desempenharam um papel fundamental na captura de Aleppo – fornecendo drones e sistemas americanos de navegação por satélite e guerra eletrônica, e ensinando colaboradores sírios e agentes do Partido Islâmico do Turquestão como usá-los”.  

Sob brutais sanções impostas por Washington e Bruxelas, que agravaram as mazelas da guerra civil e impediram a reconstrução, a pobreza extrema, que inexistia na Síria, agora atinge 1 em cada 4 sírios, e a taxa de pobreza chega a 69%, segundo a ONU.

A guerra imposta à Síria causou 7,2 milhões de deslocados internos e outros 6,4 milhões de refugiados nos países vizinhos. A economia síria atualmente é 38% da que existia em 2010, uma das mais severas depressões econômicas já vistas. O total de perdas acumuladas vai a US$ 864 bilhões.

As sanções dos EUA, particularmente as estabelecidas por Trump na “Lei César”, impossibilitaram que o país se recuperasse nos quatro anos, desde 2020, quando o quadro da guerra ficou congelado.

No ano passado, o PIB caiu 1,2%, e este ano a previsão é de encolher mais 1,5%. A inflação é de 93% e a moeda síria sofreu uma desvalorização de 141% em relação ao dólar. Há ainda o impacto devastador do terremoto de fevereiro de 2023.

Segundo o Programa Mundial de Alimentos da FAO, dos dez maiores apelos globais lançado pelo órgão da ONU para prevenção da fome, a Síria é que estava tendo a menor reposta em termos de apoio, apenas 13% da meta proposta.

Também segundo a ONU quase 13 milhões de pessoas — mais da metade da população do país — já estão enfrentando altos níveis de insegurança alimentar aguda, 650.000 crianças menores de cinco anos mostram sinais de nanismo devido à desnutrição grave, e um terço das crianças da Síria vive em pobreza alimentar.

Apesar de toda a conversa sobre a “orientação aos militantes” para não abrirem demais o jogo sobre o que espera a Síria sob o HTS e assemelhados, a embaixada do Irã em Damasco foi invadida e saqueada. Também o palácio presidencial foi invadido e saqueado. Copiando o Iraque de 2003, uma estátua do presidente Hafez Assad, pai de Bashar, foi depredada.

Moradores dos subúrbios de Damasco estão deixando suas casas às pressas. Algumas estradas estão bloqueadas, há interrupções de comunicação, algumas lojas estão fechadas e as que estão abertas têm pouca comida, já que os moradores da capital, em pânico, compraram quase tudo.

Na fronteira com o Iraque, mais de mil militares sírios atravessaram com seus veículos e tanques, fizeram a entrega do armamento às autoridades iraquianas e buscaram proteção no país vizinho.

A mídia pró-genocídio e pró-Otan já está a plena carga buscando fantasiar os degoladores de cabeças, torturadores em massa e fundamentalistas empedernidos em “rebeldes fofinhos”. O capo do HTS e ex-emir da Al Nusra Abu Mohammad Al-Jolani foi descrito, pela CNN, “como líder rebelde da Síria passou de jihadista radical a ‘revolucionário de blazer’”.

De “clássico jihadista antiocidental”, teria virado “um revolucionário mais palatável” – daqueles que “não tem o desejo de travar guerra contra nações ocidentais”, disse a CNN.

“Nos anos que se seguiram, Jolani substituiu seu traje camuflado jihadista por um blazer e uma camisa de estilo ocidental, estabeleceu um governo semi-tecnocrático em Idlib, sobre o qual seu grupo detinha o controle, e se promoveu como um parceiro viável em esforços regionais e ocidentais para conter a influência do Irã no Oriente Médio”, descreveu a CNN.

Para a manipulação funcionar melhor, a CNN admitiu que Al Jolani prendeu e eliminou “rivais”, conduziu “duras repressões” e “torturou e abusou de dissidentes”. Aliás, tudo coisa de criança comparado com suas “façanhas” ao estilo Estado Islâmico de antes de 2016.

Já o Times of Israel entrevistou outro tipo de “revolucionário” que o apartheid e a Otan gostam. Um comandante militar do Exército Livre da Síria, que só desejava na vida depor Assad e a paz total com Israel [isso em meio ao genocídio de palestinos em Gaza].

“Direi apenas que somos gratos a Israel por seus ataques contra o Hezbollah e a infraestrutura iraniana na Síria e esperamos que Israel plante uma rosa no jardim sírio após a queda de Assad e apoie o povo sírio em benefício da região”.

O ex-embaixador britânico Craig Murray advertiu que a vitória do fundamentalismo salafista implicará na destruição do pluralismo na Síria e sua substituição pelo supremacismo.

“Quando toda a mídia corporativa e estatal no Ocidente divulga uma narrativa unificada de que os sírios estão muito felizes por serem libertados pelo HTS da tirania do regime de Assad – e não diz nada sobre a tortura e execução de xiitas e a destruição de decorações e ícones de Natal – deveria ser óbvio para todos de onde isso está indo”.

“Nunca fui fã do regime de Assad. Mas inegavelmente ele manteve um estado pluralista onde as mais incríveis tradições históricas, religiosas e comunitárias – incluindo sunitas (e muitos sunitas apóiam Assad), xiitas, alauitas, descendentes dos primeiros cristãos e falantes de aramaico, a língua de Jesus – foram todos capazes de coexistir”. O mesmo – acrescenta – vale para o Líbano.

“O que estamos testemunhando é a destruição disso e a imposição de uma regra ao estilo saudita. Todas as pequenas coisas culturais que indicam pluralismo – de árvores de Natal a aulas de idiomas, vinificação e mulheres sem véu – acabaram de ser destruídas em Aleppo e podem ser destruídas de Damasco a Beirute”.

Fonte: Papiro