Como o Brasil (quase) influenciou o filme de Natal preferido dos EUA
A Felicidade Não se Compra (It’s a Wonderful Life, 1946), dirigido por Frank Capra (1897-1991), é considerado o clássico natalino por excelência. Ano após ano, sua reputação é renovada – não há uma única produção de Hollywood que tenha sido mais exibida pela TV em meio às festas de dezembro.
Curiosamente, a celebração do nascimento de Cristo é apenas um detalhe na história, que se passa na véspera do Natal. George Bailey (James Stewart) – que viveu seus 38 anos de vida como um bom samaritano, ajudando a todos – quer se matar. O motivo: complicações financeiras aparentemente incontornáveis, que podem levar George à desgraça e à prisão.
Mas, quando ele já está no alto da ponte, prestes a se jogar, seu anjo da guarda, Clarence Odbody (Henry Travers), entra em cena. Ao longo do filme, Clarence mostra como as ações de George mudaram positivamente a vida de familiares, amigos e até desconhecidos. Para não pairarem dúvidas, o anjo torto, em busca de duas asas, mostra-lhe quão corrompido seria o mundo – ou melhor, a cidade de Bedford Falls – se George não tivesse existido.
Capra fez diversos dramas e romances sobre o significado da vida, mas A Felicidade Não se Compra era seu predileto. Em suas memórias, ele conta que gostava de assistir à trama com a família a cada Natal. O longa recebeu cinco indicações ao Oscar e chegou a ser eleito pelo Instituto Americano de Cinema como o filme mais inspirador de todos os tempos.
Da TV para a posteridade
Pouco de sua sorte, porém, deve-se à passagem pelas salas de cinema. Ao estrear no Globe Theatre de Nova York, às vésperas do Natal de 1946, o filme foi criticado por seu “sentimentalismo”. As bilheterias tampouco ajudaram. Lançado nos cinemas dois meses depois, A Felicidade Não se Compra terminou o ano de 1947 na modesta 26ª colocação entre os filmes mais vistos nos EUA.
Pior: às voltas com os primórdios da Guerra Fria, o FBI (a polícia federal norte-americana) acusou Capra de fazer propaganda anticapitalista. Tudo por causa da caracterização de Henry Potter (Lionel Barrymore) como um ganancioso banqueiro – o “homem mais odiado do filme” –, num “truque comum usado pelos comunistas”.
Todas essas adversidades ficaram para trás. Em 1974, por um erro burocrático, a produtora não renovou os direitos autorais do filme, que passou a ser liberado para a TV sem custos. Deu no que deu: graças às suas inúmeras exibições na telinha, A Felicidade Não se Compra se reabilitou, convertendo-se num marco dentro e fora dos EUA. Foi a TV – e não o cinema – que o transformou num cult movie,
Tradução
O Brasil entrou sem querer na rota de Capra. Embora o País tenha a merecida fama de corromper e destruir títulos de filmes hollywoodianos – com traduções bizarras e absurdas –, ocorreu o inverso com It’s a Wonderful Life. Se fosse traduzido literalmente, o filme se chamaria aqui “É uma Vida Maravilhosa”, ou talvez “A Vida É Maravilhosa”, nomes mais simples e diretos.
Mas a RKO Pictures, responsável pela distribuição do filme no exterior, permitiu traduções – ou até recriações – mais livres do título. Em Portugal, It’s a Wonderful Life virou Do Céu Caiu uma Estrela. Já no Brasil, em vez de “É uma Vida Maravilhosa”, o filme foi renomeado para A Felicidade não se Compra.
A expressão italiana “traduttore, traditore” sugere que todo tradutor é, por natureza, um traidor – e os brasileiros fizeram justiça ao ditado, tantas foram as barbaridades na tradução de títulos: convertemos All About Eve (1950) em A Malvada, Shane (1953) em Os Brutos Também Amam, The Searchers (1956) em Rastros de Ódio, Annie Hall (1977) em Noivo Neurótico, Noiva Nervosa – e por aí vai.
Mas quem transformou It’s a Wonderful Life em A Felicidade Não se Compra mereceu a absolvição e o aplauso do próprio autor: Capra ficou tão fascinado com o título brasileiro que cogitou mudar o nome original do filme. Como as crenças também não se compram, é provável que o grande cineasta tenha morrido com a falsa conclusão de que brasileiro sabe intitular filmes como ninguém.