Reprodução: Jornal da Tarde

Para a receita de “O Peru de Natal” (1942), Mário de Andrade (1893-1945) recomenda uma ave de carne mansa, “duas farofas, a gorda com os miúdos, e a seca, douradinha”, acompanhadas de ameixa preta (para uma intervenção mais violenta) e pedacinhos de noz (para um estorvo petulante). As bebidas indicadas são cerveja e um cálice de xerez (vinho licoroso da região da Andaluzia, na Espanha).

Como é Natal, a ave tem que ser compartilhada com a família, ainda que estejam de luto, para compor todos os elementos da receita do gênio modernista transformada em um dos seus contos mais populares.

Bom, para saber os pormenores de como elaborar esta receita capaz de causar “felicidade gustativa” deixando “todos alagados de felicidade” melhor mesmo é se aprofundar na leitura do texto (leia completo aqui) para se obter uma verdadeira felicidade literária através do alagamento de inventividade de Mário. A leitura é recomendada ainda mais neste período de maiores amenidades, onde se desfruta de maior livre – pelo menos para alguns – que são as festas de final de ano.

E é nesse momento que o conto “O Peru de Natal” – publicado originalmente na Revista da Academia Paulista de Letras e incluído na antologia póstuma Contos Novos (1947), dois anos após a morte de Mário – se passa.

Nele, o jovem Juca de 19 anos resolve confrontar o luto da família pela morte do pai – ocorrida cinco meses antes – por meio de uma celebração na noite natalina que terá como prato principal peru. A ave até então reservada para momentos festivos maiores, com muitos parentes, dessa vez ficaria restrita para cinco pessoas (Juca, mãe, tia e irmãos) – um verdadeiro luxo.

Apesar de parecer uma situação simples, para a família não é. A figura do pai ainda se fazia presente: “lembrança dolorosa em cada almoço, em cada gesto mínimo da família”. Porém, é mais do que isso, a figura paterna é controversa, uma vez que o narrador Juca destaca a “natureza cinzenta” dele, classificado como “desprovido de qualquer lirismo”, incapaz de aproveitar a vida, sentenciado como “puro-sangue dos desmancha-prazeres”.

Juca, que “gostara apenas regularmente” do pai e mais por instinto de filho, para evitar outra ceia do mesmo “tipo” de seu falecido pai (castanhas, figos, passas, depois da Missa do Galo), propôs o que parecia uma loucura: a ceia com peru. Ele mesmo seria a pessoa indicada para tal proposta, pois tinha fama de doido por ocasiões causadas na infância e juventude.

Ao bradar “Bom, no Natal, quero comer peru”, houve o processo de convencimento em fazer o “prato de festa”, que, como destacado, ninguém ali ao certo sabia o que era, pois a invasão de parentes nas comemorações relegava a eles o “peru resto de festa”. Para mãe e tia a situação era pior. Sempre preocupadas em preparar e servir, ficavam apenas com as sobras.

O escritor modernista Mário de Andrade

Decididos pelo peru, a ternura permanente pela mãe – cúmplice das “loucuras” de Juca – tomou o ambiente de Natal em sobreposição à figura do pai. Este, como um espírito que os assombrava, foi ficando de lado com a oportunidade dela e dos demais saborearem um peru de fatias amplas.

Ao servir a mãe com prioridade, a comoção tomou conta dela e também da tia e da irmã (as três mães de Juca). Do choro para a lembrança do pai foi um instante: “figura cinzenta, vinha pra sempre estragar nosso Natal”.

O peru, que a receita já foi dada acima, estava “digno do Jesusinho nascido”, mas apesar disso foi comido inicialmente em silêncio lutuoso. Neste ponto então travou-se o embate entre os mortos, o peru e o pai.

Com a luta entre os dois, a ave foi ficando de lado. No entanto, quando todos se acostumaram a falar do pai, a imagem dele foi se dissipando, ficando apenas “uma estrelinha brilhante do céu”. Nesse momento o peru voltou triunfante e se sagrou “completamente vitorioso”.

A partir daí a comilança se tornou “felicidade gustativa”, “felicidade maiúscula”, marcando “o início de um amor novo, reacomodado, mais completo, mais rico e inventivo, mais complacente e cuidadoso de si”. O verdadeiro sentido de “felicidade familiar”.

Fortuna crítica e desdobramentos

Este pequeno conto é alvo de uma fortuna crítica amplamente encontrada na internet. A partir dele se debatem questões como memória, patriarcado, psicanálise na questão sobre vida e morte, ou até mesmo ideias filosóficas sobre felicidade.

Outras questões comumente levantadas se referem a possíveis críticas sociais pela ótica que contrasta modernidade e a tradição, com a avareza do pai “naquela casa de burgueses bem modestos” em um momento de modernização do país em referência a data de publicação do conto, sem contar as relações entre as personagens, com tensões e hipocrisias presentes.

De acordo com a jornalista Viviane Aguiar, no seu projeto Lembraria, para além de todos os assuntos que o conto remete, muito possivelmente Mário de Andrade ainda tenha se utilizado de aspectos de sua própria biografia nele. A perda do pai ainda jovem, as três mães (a mãe Mariquinha, a irmã Maria de Lourdes e sua tia Nhanhã) e o hábito de servir Mariquinha em sua velhice, como também outras semelhanças descritas em dias de festa, que se misturam entre o conto e a realidade.

Ao longo dos tempos, “O Peru de Natal” também ganhou outros desdobramentos. Virou inspiração para uma ópera de Leonardo Martinelli (assista aqui), já foi questão do Enem 2015 e até mesmo existe um texto de Moacyr Scliar (1937-2011) pela ótica da vítima, o peru, ressaltando ainda mais toda a riqueza que o texto trouxe para nós.

Estas são apenas algumas referências e repercussões do que um simples evento como o Natal se torna na mão de um gênio brasileiro, ao revelar questões que podem se estender para a sociedade e as complexidades da vida familiar.

Dessa maneira, acreditamos com sinceridade que o desejo de Mário de Andrade para todos neste 25 de dezembro é muita literatura, um peru de natal e “todos alegres, bambeados por duas garrafas de cerveja”.