Espanha: governo de Valência fechou Defesa Civil para “cortar gastos” e 217 morreram na enchente
Aos gritos de “assassinos” e “fora”, dirigidos ao rei Filipe VI, ao primeiro-ministro Pedro Sanchéz e ao governador Carlos Mazón, seguidor do famigerado ditador Fanco, uma multidão protestou no domingo (3) em Paiporta, uma das cidades da região [Generalitat] de Valência.
A cidade foi a mais atingida pelas chuvas torrenciais que mataram 217 pessoas e deixaram 2 mil desaparecidas cinco dias antes, contra a omissão das autoridades nas operações de resgate e a falta de alerta sobre a tempestade, a pior em um século. Há cerca de um ano, Mazón havia eliminado a ‘Unidade Valenciana de Emergências’ – isto é, a Defesa Civil -, logo após tomar posse, como parte de sua política de violentos cortes nos investimentos públicos.
O repúdio juntou moradores e voluntários que, na falta de uma ação governamental de socorro digna desse nome, tomaram para si a limpeza das ruas e a busca de corpos. O caldo ameaçou engrossar, com a multidão atirando lama e pedras contra a comitiva. O governador fugiu; o carro de Sanchéz chegou a ser cercado e esmurrado; e o rei e sua senhora foram resgatados pela segurança.
“As pessoas estão morrendo e vocês estão vindo agora”, indignaram-se os moradores e voluntários. “Estamos com fome! Traga uma pá!”, gritou alguém. “Ficamos sem nada e ninguém nos ajuda”, disse uma mulher. [A tormenta] era conhecida “e ninguém fez nada para evitá-la”, disse outro manifestante.
A chuva na costa mediterrânica ao sul de Valência, ao longo do rio Turia, foi a mais intensa em um século, tendo chovido em algumas horas o equivalente a um ano inteiro. Segundo especialistas, foi um evento climático extremo, com o ar quente e úmido encontrando o ar frio, criando um sistema instável, cada vez mais frequente na região, a assim chamada Depressão Isolada em Níveis Altos (Dana). Em Paiporta, 62 pessoas morreram e não se sabe quantas ainda estão sob metros de lama.
“Uma tragédia inimaginável”, disse o ministério do Interior espanhol sobre os milhares de toneladas de lama que destruíram cidades, casas, edifícios, estradas e paisagens da região. Um morador de Paiporta comparou a um tsunami, com a cidade tornada “um cemitério, com corpos presos debaixo de um metro e meio de lama e debaixo de carros”.
A Agência Meteorológica da Espanha (Aemet), havia enviado uma série de alertas para o risco desde a sexta-feira anterior e inclusive, na véspera, decretou alerta vermelho. O que foi ignorado pelo governador Mazón. Diante da repulsa popular, a ida da comitiva de autoridades à vizinha cidade de Chiva foi cancelada.
As cenas do repúdio viralizaram, enquanto alguns observadores tentaram reduzir o protesto à ação da “extrema-direita” ou, segundo Sanchéz, aos “violentos”.
Na segunda-feira (4), em Bonaire, onde há centenas de carros submersos na enorme garagem subterrânea de um shopping e se teme que haja outras vítimas, mergulhadores começaram a inspecionar os veículos. A tormenta se estendeu a Barcelona, na Catalunha, e mais de 80 voos tiveram de ser cancelados ou adiados. Os trens pararam e as aulas foram suspensas.
A dimensão da tragédia não pode ficar apenas na conta do fenômeno climático extremo, já que os sobreviventes denunciam que não foram avisados sobre a tempestade e nenhum alerta foi emitido a tempo. Corpos foram encontrados a 12 quilômetros de suas cidades, arrastados pela inundação.
Como analisou o jornal La Jornada, do México, “muitas vidas foram perdidas no regresso a casa depois do dia de trabalho, na hora mais crítica da tempestade de terça-feira à noite, quando um aviso a tempo teria impedido que estivessem no pior lugar, na pior hora.”
A publicação relatou, ainda, que grandes supermercados e algumas empresas obrigaram os seus funcionários a permanecerem no emprego. Mas alguns prefeitos, pelo contrário, “alertaram para a iminência das chuvas e fecharam atividades laborais e educativas”.
A tragédia gerou uma enorme onda de solidariedade, com milhares de voluntários se deslocando para Valência a pé, de bicicleta ou em qualquer meio de transporte, para resgatar vítimas, limpar casas e ruas e levar ajuda, alimentos e água.
Ainda segundo o La Jornada, “na segunda-feira o alerta já estava vermelho, mas o governo valenciano, liderado por Carlos Mazón, do Partido Popular, não agiu nem denunciou a situação que poderia ter salvado dezenas de vidas”. Pelo contrário, na tarde de terça-feira “minimizou o que já era vivido como uma tragédia nas ruas”.
Por sua vez o governo Sánchez esperou que Mazón decretasse o nível de alarme ao terceiro grau para agir, conforme indicado pela gestão de riscos espanhola. A velha e conhecida disputa, no Brasil, de se o mosquito é federal, estadual ou municipal, quando a coisa pega pra valer.
Mazón também rejeitou a ajuda oferecida por outros governadores, enquanto a Unidade de Emergência Militar (UEM), de cunho federal, demorou muito a agir. Sánchez vem sendo cobrado a decretar um estado de alarme que permita ativar todos os mecanismos de ajuda.
A decisão de Mazón de proibir a chegada de mais voluntários a Valência foi ignorada por milhares de pessoas que para lá se dirigiram e têm sido imprescindíveis ao socorro.
O comandante da UEM, general Francisco Javier Marcos, admitiu problemas nas operações de socorro, acrescentando que o engarrafamento em algumas estradas estava dificultando a distribuição de alimentos. Ele acrescentou que o número de soldados no terreno foi “aumentado”, com 7.800 previstos até as 20h, horário local de segunda-feira, que estavam sendo apoiados por 17 mil voluntários. Outros 5 mil soldados participavam do apoio logístico. Um navio de guerra transportando 104 soldados de infantaria da marinha, bem como caminhões com comida e água, atracou no porto de Valência na segunda-feira.
Fonte: Papiro