Chefes de Estado da Rússia, China e África do Sul na abertura da Cúpula do BRICS em Kazan | Foto: Alexander Kriazhev/AFP

Os delegados à 16ª Cúpula do BRICS, a primeira após a ampliação do grupo, foram recepcionados pelo presidente da Rússia, Vladimir Putin, ao chegarem à cidade de sua realização, Kazan, n terça-feira (22).

Como foi observado por Putin e demais chefes de Estado presentes ao encontro, a Cúpula se deu sob intensa atenção dos que conformam a Maioria Global e com o objetivo de avançar para um mundo multipolar mais pleno de soberania, desenvolvimento, justiça social e segurança.

O presidente chinês Xi Jinping, o primeiro-ministro indiano Narendra Modi, o presidente sul-africano Cyril Ramaphosa, o ministro das Relações Exteriores brasileiro, Mauro Vieira, o premiê da Etiópia, Abiy Ahmed, o presidente do Egito, Abdel Fattah al-Sisi, o presidente do Irã Masoud Pezeshkian, o líder dos Emirados Árabes Unidos, Mohammed bin Zayed Al Nahyan e o ministro das Relações Exteriores saudita, príncipe Faisal bin Farhan bin Abdullah, entre outras lideranças, estão na milenar cidade russa, que é símbolo do encontro de civilizações.

Líderes de 36 países estão presentes à cúpula, que ocorre sob o lema ‘Fortalecer o multilateralismo para um desenvolvimento global equitativo e seguro’. O presidente brasileiro Lula, que sofreu uma queda doméstica e não pôde viajar por orientação médica, irá participar por videoconferência. Na parte da manhã, ele conversou com Putin por telefone durante 20 minutos.

Putin também se reuniu com a ex-presidente brasileira Dilma Rousseff, que encabeça o Novo Banco de Desenvolvimento do BRICS. O NBD foi estabelecido em 2015 pelos países dos Brics – Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul – para mobilizar recursos para projetos de infraestrutura e desenvolvimento sustentável em mercados emergentes e países em desenvolvimento do Sul Global.

“O aumento das liquidações em moedas locais torna possível reduzir as taxas de serviço da dívida, aumentar a independência financeira dos países membros do BRICS, minimizar os riscos geopolíticos e, tanto quanto possível no mundo de hoje, libertar o desenvolvimento econômico da política”, ressaltou Putin.

“Foram financiados mais de 100 projetos, totalizando 33 bilhões de dólares. Esta é uma contribuição séria para o desenvolvimento das infra-estruturas e das economias dos nossos países”, ele acrescentou.

A disposição é fortalecer o NBD para que se torne o principal investidor em grandes projetos tecnológicos e de infraestrutura para os membros do BRICS e para a Maioria Global – sem os “condicionamentos” do FMI, ou austericídio.

Entre os candidatos à parceria com o BRICS em Kazan, estão o presidente turco Recep Erdogan e o chanceler cubano Bruno Rodriguez. O presidente Miguel Díaz-Canel, que estava certo de comparecer, teve que ficar em Cuba para acompanhar em pessoa dos esforços de religamento do Sistema Eletroenergético Nacional que entrou em pane dias antes da Cúpula.

AMPLITUDE

Por sua amplitude a cúpula de Kazan é um desmentido cabal à pretensão de Washington e Bruxelas de que a Rússia estaria “isolada” por se opor à quebra da neutralidade da Ucrânia e à expansão da Otan até suas portas e se contrapor ao genocídio no Oriente Médio e à metástase da Otan na Ásia.

Como tem destacado Putin, o BRICS se tornou o motor do desenvolvimento global e seu PIB por paridade de poder de compra já supera o do G7, o consórcio de países imperialistas que tenta perpetuar a dominação neocolonial.

Assim, os países dos BRICS têm se dedicado a realizar seu comércio bilateral nas próprias moedas nacionais, sem pagar pedágio ao dólar e ao abusivo controle dos EUA sobre o sistema financeiro global, especialmente com o acirramento da política nefasta de Washington de aparelhar o dólar (chegando a sequestrá-lo) para seus interesses insanos de dominação global.

A cúpula foi precedida de uma intensa programação preparatória ao longo de um ano de presidência rotativa russa, visando criar mecanismos factíveis de desdolarização bem como a instauração de sistemas de pagamentos amigáveis à maioria global e de promoção do desenvolvimento e da soberania dos países que integram o BRICS.

Enfim, superação dos mecanismos impostos sob Bretton Woods, cuja essência, nas palavras do general De Gaulle, era o “privilégio exorbitante” dos EUA de pagar dívidas imprimindo dinheiro.

O que foi, na década de 1970, reciclado para forçar todos os países a pagarem somente em dólar pelo petróleo, criando uma demanda artificial para a moeda norte-americana.

MECANISMOS GANHA-GANHA

Em suma, o que está em jogo é aquilo que os chineses chamam de substituir tamanha pilhagem por mecanismos “ganha-ganha”.  E, como enfatizou Putin, o BRICS “não é um grupo antiocidental, é apenas um grupo não ocidental”.

Aliás, a desdolarização entrou na ordem do dia por causa da enxurrada de sanções despejada contra a Rússia e muitos outros países, instrumentalizando o dólar como arma, minando seu status de moeda de reserva global e forçando as vítimas dessa arbitrariedade a construir alternativas ao saqueio.

O convite ao secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, para participar da cúpula do BRICS reflete a compreensão de que é preciso fortalecer o direito internacional centrado na Carta da ONU.

Uma das principais reivindicações do BRICS é a ampliação do Conselho de Segurança da ONU para que incorpore a Maioria Global, com Brasil, Índia e países da África, uma vez que a composição atual reflete o pós II Guerra Mundial, anterior à vitória da descolonização em escala planetária.

DESDOLARIZAÇÃO

A desdolarização entrou na ordem do dia, mas é um processo a ser enfrentado passo a passo: “Não fomos nós que abandonamos o dólar”, sublinhou Putin.

“Fomos banidos e impedidos de [usá-lo]. E agora 95% de todo o comércio externo da Rússia é denominado em moedas nacionais. Eles mesmos fizeram isso com suas próprias mãos. Eles pensaram que iríamos entrar em colapso.”

Quanto a uma moeda unificada do bloco, o presidente russo observou que isso requer “integração econômica completa (…) Além do alto nível de integração entre os membros do BRICS, a introdução de uma moeda única do BRICS envolveria qualidade monetária e volume comparáveis (…) Caso contrário, enfrentaremos problemas ainda maiores do que os que ocorreram na UE.”

MUDANÇAS TECTÔNICAS

Por sua vez, o presidente chinês Xi Jinping, ao se reunir com Putin em sua décima visita ao país vizinho, reiterou que o mundo “está passando por profundas mudanças não vistas em um século, e a situação internacional é caótica e interligada; no entanto, a profunda amizade entre a China e a Rússia, construída sobre gerações de apoio mútuo, permanecerá inalterada, assim como nossas responsabilidades de grande potência em beneficiar nossos povos.”

“Após o recorde do ano passado no comércio mútuo, a Rússia e a China, apesar do impacto externo negativo, mantêm a dinâmica de crescimento econômico e de interação econômica. Podemos dizer com plena confiança que as relações russo-chinesas se tornaram um modelo de como as relações entre os Estados devem ser construídas no mundo moderno”, observou Putin.

Para Xi, em meio à complexa e turbulenta situação internacional, o desenvolvimento estável das relações China-Rússia, como dois grandes países em desenvolvimento e membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, “não apenas atende às necessidades de ambas as nações, mas também ajuda a manter a unidade e os interesses gerais dos países do Sul Global”.

Ainda, como os dois maiores países vizinhos do continente eurasiano, a relação harmoniosa entre a China e a Rússia é uma boa notícia para a região e para o mundo.

Na concepção de Pequim, a relação China-Rússia é caracterizada “pela não aliança, não confronto e não visando terceiros, o que forma a base da cooperação entre as duas nações”. Essa natureza da relação China-Rússia não mudou em vários mecanismos de cooperação, incluindo o BRICS.  

“Não busca confrontos estreitos e é fundamentalmente diferente em natureza da “diplomacia de pequenos círculos”, como fazem a aliança Five Eyes e o G7. “Somente aqueles que ainda abrigam a mentalidade da Guerra Fria veriam a cooperação independente e autônoma entre a China e a Rússia, bem como a cooperação multilateral como o BRICS, como um ‘contra-ataque contra o Ocidente’”.

VENTOS DA COOPERAÇÃO

De acordo com a China, um número crescente de países passou a reconhecer a importância e a necessidade de abertura, inclusão e cooperação ganha-ganha. “No caminho para um mundo multipolar mais igualitário e ordenado e uma globalização econômica inclusiva, a China e a Rússia têm muitos parceiros. Os países do Sul Global estão avançando juntos, e os ventos da ‘Cooperação do Grande BRICS’ estão agitando infinitas possibilidades de cooperação Sul-Sul” – apontando para a construção de uma comunidade com um futuro compartilhado para a humanidade.

O primeiro-ministro indiano, Narendra Modi saudou a expansão do BRICS, assinalando que a incorporação de novos membros no ano passado “aumentou sua inclusão e agenda para o bem global”.

“A Índia valoriza a estreita cooperação dentro do BRICS, que emergiu como uma importante plataforma para o diálogo e discussão sobre questões relativas à agenda global de desenvolvimento, multilateralismo reformado, mudança climática, cooperação econômica, construção de cadeias de suprimentos resilientes, promoção cultural e de conexão entre pessoas, entre outros”, disse o primeiro-ministro.

Para Modi, a visita “reforça a parceria estratégica especial e privilegiada” entre Nova Delhi e Moscou. “Lembro-me com carinho de sua visita a Moscou em julho e das negociações frutíferas. Trocamos regularmente informações por telefone. Estou grato por você ter respondido ao nosso convite e ter vindo pessoalmente a Kazan”, disse-lhe Putin.

Apesar das sanções decretadas pelo Ocidente, a Índia se tornou uma das maiores compradoras do petróleo russo e se beneficiou obtendo um preço mais em conta.

Em diálogo com o presidente sul-africano Ramaphosa, Putin enfatizou a importância da cooperação financeira: “o volume de negócios do comércio voltou a crescer, no período janeiro-agosto deste ano, 3%. Precisamos trabalhar em conjunto em termos de aumento e diversificação do comércio e do investimento mútuos.”

Para o líder sul-africano, o BRICS pode ter um papel muito importante no desenvolvimento africano, particularmente apoiando a industrialização e a implantação de infraestrutura.

POSSÍVEIS NOVOS PARCEIROS

No primeiro dia da cúpula, uma lista de 12 ou 13 “parceiros do BRICS” circulou em Kazan, com informação de que entre eles estariam Cuba e Bolívia, na América Latina; Indonésia, Malásia e Tailândia, no sudeste asiático; e a Nigéria, na África. Também o presidente venezuelano Nicolas Maduro chegou para a conferência. Em paralelo, China e Índia anunciaram ter chegado a um acordo para superação do impasse fronteiriço no Himalaia. A cúpula prossegue na quarta-feira e será concluída na quinta-feira, com uma “Declaração de Kazan”.

Fonte: Papiro