Antonio Cícero. Foto: divulgação/ABL

“Como sou ateu desde a adolescência, tenho consciência de que quem decide se minha vida vale a pena ou não sou eu mesmo. Espero ter vivido com dignidade e espero morrer com dignidade”. Com essas palavras, o escritor e filósofo Antônio Cícero, de 79 anos, encerrou não apenas sua carta de despedida, mas sua trajetória. 

Seu ato final, corajoso e altivo, trouxe à tona, mais uma vez, o debate tanto sobre a morte ou suicídio assistido — pelo qual ele optou por sofrer de Alzheimer — quanto a eutanásia. Na mesma carta, ele fez questão de, após relatar os sofrimentos pelos quais passava, dizer que ainda estava “lúcido bastante para reconhecer” sua “terrível situação”, de maneira a esclarecer que tomava essa decisão de forma racional. 

Ambas as práticas são proibidas no Brasil, mas admitidas em outros países. Um deles, a Suíça, onde o carioca, dono de uma rica obra também como compositor, escolheu passar seus últimos momentos, ao lado do marido, o figurinista Marcelo Pies, com quem se relacionava desde 1984. 

No país, Cícero se tornou sócio da fundação Dignitas, em Zurique — voltada para a conscientização, orientação e suporte relativos à prática — e uma série de procedimentos e exames foram feitos antes do ato final.

Em entrevista ao jornal O Globo, Pies contou que a decisão de Cícero, a pedido dele mesmo, não foi anteriormente comunicada à família. Sua irmã, a cantora Marina Lima, soube na véspera pelo próprio escritor.

De acordo com o companheiro, “com toda a certeza, foi uma morte digna. Ele morreu em paz, segurando a minha mão, muito tranquilo e sem nenhuma ansiedade. Depois do medicamento, ele dormiu e, em meia hora ou um pouco mais, morreu. O futuro para quem tem Alzheimer é sabido. Ainda não há cura nem tratamento eficaz. Respeitei a decisão dele e o apoiei. Admiro imensamente a coragem e a determinação. Ele sempre apoiou todas as formas de liberdade, e essa foi mais uma”. 

A morte repercutiu no mundo artístico, cultural e político, com declarações lamentando a perda, reconfortando parentes, mas ao mesmo tempo defendendo o direito de Cícero decidir sobre seu futuro. 

Em nota, a ABL resumiu bem tal posição: “Em sua decisão corajosa, honramos a liberdade de ser e a serenidade diante da vida e da morte, respeitando o gesto consciente de não mais permanecer entre nós, dado seu delicado estado de saúde.” 

Um debate fora da pauta brasileira

Ao menos 13 países — entre os quais a Suíça, Holanda, Bélgica, Espanha, Alemanha e Áustria, e em Luxemburgo, Portugal e Colômbia — permitem alguma destas ou ambas as práticas. Recentemente, outras pessoas famosas optaram pelo suicídio assistido, como foi o caso do cineasta Jean-Luc Godard e do ator Alain Delon. 

Por aqui, o caso de Antônio Cícero é mais um a suscitar o debate, especialmente nas redes sociais, onde favoráveis e contrários fizeram questão de se posicionar. Mas, a discussão está longe de ter alguma força capaz de mudar a legislação, principalmente considerando a influência que as religiões têm sobre governos, legisladores e juízes — apesar da laicidade do Estado —, bem como sobre a maior parte da população.

O suicídio assistido ocorre quando a própria pessoa faz a administração da substância letal, fornecida por uma equipe médica. Já a eutanásia acontece quando a equipe médica aplica a medicação. Tanto uma como a outra é, em geral, usada por pessoas com doenças incuráveis que provocam profunda dor e sofrimento e são feitas de maneira cuidadosa, seguindo uma série de normas e ritos.

No Brasil, o tema é tabu e as práticas são consideradas crimes. Pela legislação brasileira, a eutanásia é classificada como um tipo de homicídio simples, combinando dois artigos do Código Penal: o 121, que trata do ato de “matar alguém”, e 29, que estende a culpabilidade e as penas aplicadas a um crime a “quem, de qualquer modo, concorre” para ele. A pena, no entanto, é menor em um sexto a até um terço se comprovado motivo de “relevante valor moral”, ficando entre seis e 20 anos de prisão. 

No caso de suicídio assistido, a prática é crime previsto no artigo 122, que veta o ato de “induzir ou instigar alguém a suicidar-se ou prestar auxílio para que o faça”, com pena de reclusão de seis meses a dois anos. 

Atualmente, o mais perto que se chegou de alguma possibilidade neste sentido no Brasil foi resolução de 2006, do Conselho Federal de Medicina (CFM), permitindo que médicos fizessem a ortotanásia, ou seja, a interrupção do tratamento de um doente terminal, caso seja este o desejo exposto pelo paciente.

A orientação foi suspensa pouco tempo depois, em 2007, pela Justiça Federal, a pedido do Ministério Público Federal (MPF), que considerava que a prática só poderia ser autorizada por meio de lei. Três anos depois, em 2010, a liminar foi anulada pela Justiça a pedido do próprio MPF, que mudou seu entendimento sobre o tema. 

No Congresso Nacional, o assunto sequer está perto de entrar em pauta. Uma pesquisa no sistema das duas casas mostra que nem a eutanásia, nem o suicídio assistido, está no rol de preocupação da grande maioria dos legisladores. E, considerando o perfil cada vez mais à direita e religioso da maioria dos deputados e senadores, o tema deverá demorar muito para ser debatido. 

Nesse cenário, fica evidente que o debate sobre a vida e o seu fim, sobre mudanças legislativas que permitam que cada um tenha autonomia sobre sua própria existência, ainda é inviável no Brasil. Poder viver e morrer com dignidade, como sabiamente escolheu Antonio Cícero, seguirá sendo, por muito tempo, uma possibilidade inalcançável para a maioria dos brasileiros.