No início de 2024, a obra de Graciliano Ramos entrou em domínio público. Com isso, seus livros agora poderão ser publicados livremente, não estando mais vinculados a uma única editora. A editora Anita Garibaldi, em parceria com o coletivo Práxis Literária, está produzindo uma edição especial e singular de um livro importante mas pouco conhecido do autor: “Histórias de Alexandre”, obra publicada originalmente em 1944 e que agora completa 80 anos.

Com esta publicação comemorativa, organizada pelos pesquisadores e ensaistas Yuri Martins-Fontes e Edilson Dias de Moura, as duas editoras inauguram, em parceria, a coleção Literatura a Contrapelo – tendo o gosto de inscrever na história do livro brasileiro essa nova edição.

Uma edição crítica, cuidadosa e corrigida, feita de modo artesanal, cujo texto-base foi revisto e conferido diretamente com os manuscritos do autor (pertencentes ao IEB-USP), além de cotejado com aquela pioneira edição de 1944, mais precisamente, com o exemplar revisado a lápis pelo próprio Graciliano e dedicado a sua esposa Heloísa: “minha Cesária”.

A nova edição traz:

Introdução especialmente elaborada pelos dois organizadores, abordando a vida e obra do autor, bem como percurso e aspectos históricos e literários das Histórias de Alexandre;

Prefácio exclusivo de Walnice Nogueira Galvão, crítica literária e ex-professora da USP, que fala de sertão e regionalismo;

Ilustrações primorosas de Marcelo Guimarães Lima, artista que, inspirado nos traços de cordel e nas histórias em quadrinhos, remete ao ambiente do sertão e seus tipos humanos;

Glossário: o livro brinda o leitor com um pertinente vocabulário – que atualiza o público contemporâneo (em especial o infanto-juvenil) quanto a termos do linguajar sertanejo falado há quase um século;

Posfácio: e por fim, um ensaio extra assinado pelo organizador Yuri Martins-Fontes e pelo ilustrador – também historiador e crítico de arte – Marcelo Guimarães Lima, em que se aborda a relação entre realidade e imaginação, a nobre arte de inventar verdades.

Escritor político

Para Cláudio Gonzalez, editor da Anita Garibaldi, o interesse na obra de Graciliano Ramos vai além do elevado valor literário do autor alagoano. Gonzalez lembra que Graciliano foi um “comunista de carteirinha” e a editora Anita Garibaldi, com sua tradição de quase 45 anos publicando obras e autores comprometidos com os ideais socialistas, não poderia perder a oportunidade de ter um livro de Graciliano Ramos em seu catálogo.

A trajetória política de Graciliano começou quando ele assumiu, em 1928, a prefeitura de Palmeira dos Índios, município do agreste alagoano. Como prefeito, Graciliano resolveu combater a corrupção, acabar com o clientelismo que favorecia os coronéis e dar uma atenção especial para a periferia, antes ignorada. Ações de sua gestão foram descritas em relatórios que ele encaminhava ao governador. Com ironia, ele escreveu, no relatório sobre o ano de 1929, acerca dos mais abastados do município: “Bem comido, bem bebido, o pobre povo sofredor quer escolas, quer luz, quer estradas, quer higiene. É exigente e resmungão. Como ninguém ignora que se não obtém de graça as coisas exigidas, cada um dos membros desta respeitável classe acha que os impostos devem ser pagos pelos outros”.

Foram os relatórios que chamaram a atenção do editor Augusto Frederico Schmidt para a qualidade do texto de Graciliano e levaram à publicação, em 1933, de seu primeiro romance, “Caetés”. Na época, o autor já havia deixado a prefeitura de Palmeira.

Depois da breve experiência como prefeito, Graciliano se mudou para Maceió, onde assumiu primeiramente a direção da Imprensa Oficial de Alagoas e, em 1933, o cargo de diretor da Instituição Pública de Alagoas, órgão que equivalia à Secretaria de Educação. “Ele foi um secretário revolucionário, redirecionando os investimentos para os bairros pobres e municípios carentes”, conta Dênis de Moraes, autor da biografia “O velho Graça” (Boitempo Editorial).

Logo depois de deixar o governo de Alagoas e justamente por algumas das posturas que mantinha em sua vida pública e pelos temas de seus livros, Graciliano foi preso pelo governo de Getúlio Vargas em março de 1936, acusado de ser comunista. A prisão de Graciliano acompanhou uma caça perpetuada por Vargas contra os integrantes da ANL (Aliança Nacional Libertadora), ligada ao PCB, que, meses antes, em novembro de 1935, deflagraram a chamada Intentona Comunista. Graciliano foi preso junto com diversos outros líderes do partido, como João Amazonas. Foi durante os 10 meses que esteve preso na Ilha Grande que Graciliano escreveu os esboços de uma de suas obras mais relevantes, “Memórias do Cárcere”, publicada em 1953, meses após sua morte.

Graciliano foi acusado de ser “comunista” quando ainda não era, pelo menos não oficialmente. Em 1945, convicto da justeza das ideias socialistas, ele aceitou convite de Luis Carlos Prestes e se filiou oficialmente ao Partido Comunista do Brasil (PCB).

O escritor amazonense Milton Hatoum, responsável pela conferência de abertura da FLIP de 2013, que homenageou Graciliano, disse na época que “na vida política do autor, tanto como prefeito de Palmeira dos Índios e depois como secretário de Educação de Alagoas, já havia uma preparação para o que seria sua ficção”. Hatoum salienta que Graciliano não era um autor panfletário, “mas ele tocou em questões profundas da nossa sociedade”.

As histórias de Alexandre

Muitas destas “questões profundas” podem ser encontradas em “As histórias de Alexandre”. Novela sertaneja cheia de fantasia, humor, entrelinhas e criatividade – com pitadas de crítica social –, as maravilhosas histórias de Alexandre e Cesária foram dedicadas pelo autor ao público juvenil. Entretanto, elas nada ficam a dever ao público maduro.

As “histórias” do livro se passam em um nordeste anterior ao rádio e à televisão. Era por meio de histórias fantásticas, transmitidas oralmente, que as pessoas se distraiam e dividiam seu folclore e suas tradições.

Mesmo quem nunca leu esta pequena-grande obra de Graciliano certamente irá lembrar de alguns personagens ilustres da TV brasileira, imortalizados pelo humorista Chico Anysio: o coronel Pantaleão, sua mulher Terta e o afilhado Pedro Bó, sucessos na televisão e pelo menos em um livro, “É mentira, Terta?” – foram inspirados nos protagonistas deste “Histórias de Alexandre”.

Como adquirir um exemplar

Para adquirir esta nova edição caprichada de Histórias de Alexandre, editada pela Práxis Literária e pela Anita Garibaldi, é preciso colaborar com o financiamento coletivo que está sendo mobilizado através da plataforma Catarse, clicando neste link.

As adesões terminam em breve, pois podem ser feitas até o dia 19 de outubro. A previsão de publicação e entrega do livro é para dezembro deste ano.

(por Cezar Xavier)