Conselhos querem responsabilizar Bolsonaro pela má gestão da pandemia
Representantes do Conselho Nacional de Saúde (CNS) e do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) protocolam requerimento junto à Procuradoria Geral da República (PGR) Foto: Ascom CNS
O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) tornou-se alvo de um pedido formal de responsabilização criminal devido à sua atuação durante a pandemia de Covid-19. Em uma iniciativa conjunta, o Conselho Nacional de Saúde (CNS) e o Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) protocolaram um requerimento junto à Procuradoria Geral da República (PGR) para reativar investigações e averiguar as ações e omissões do governo Bolsonaro que, segundo os conselhos, resultaram em consequências devastadoras para a saúde pública e na morte de milhares de brasileiros entre 2020 e 2022.
A solicitação destaca a incompatibilidade entre as políticas adotadas pelo governo Bolsonaro e as orientações científicas da Organização Mundial da Saúde (OMS). “O número exorbitante de casos e óbitos por Covid-19 notificados, sem contar aqueles que não o foram, é notoriamente o resultado da política sanitária adotada pelo governo do ex-Presidente da República Jair Messias Bolsonaro que se posicionou na contramão das orientações da comunidade científica”, diz o documento, sublinhando que Bolsonaro teria agido decisivamente para expandir a disseminação do vírus, seja por ações diretas ou omissões.
Em entrevista, a presidenta do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH), Marina Dermmam, destacou o empenho dos conselhos nacionais na responsabilização dos gestores do governo Bolsonaro pela gestão da pandemia de Covid-19. O CNDH e o Conselho Nacional de Saúde (CNS) protocolaram uma representação junto à Procuradoria Geral da República (PGR), reforçando que a condução das políticas de saúde durante a pandemia foi marcada por desrespeito a diretrizes sanitárias, resultando em milhares de mortes que, segundo Marina, poderiam ter sido evitadas.
Marina enfatizou o simbolismo da CPI da Covid, realizada em 2021, que trouxe à tona evidências sobre as falhas e omissões do governo Bolsonaro no enfrentamento da pandemia. Segundo ela, “já se passaram três anos da CPI da Covid e de outros processos que solicitaram a punição dos responsáveis, mas nada aconteceu. A gente está falando de uma impunidade em um caso em que tivemos milhares de mortes pela Covid e que poderiam ter sido evitadas.”
Base normativa e violação do direito à saúde
A presidenta do CNDH afirmou que a representação enviada à PGR baseia-se em um entendimento fundamental: o direito à saúde é um direito humano e constitucional, cuja proteção é um dever do Estado. Ela explicou que a negligência em adotar políticas sanitárias efetivas violou normas do Sistema Único de Saúde (SUS) e outras diretrizes sobre vacinação e controle de pandemia que, no Brasil, existem há décadas. A legislação sanitária exige que gestores públicos sigam “evidências científicas para promover, prevenir e recuperar a saúde da população”, conforme consta na Constituição Federal.
Marina enfatizou que os ex-gestores, incluindo Bolsonaro e os ex-ministros da Saúde Eduardo Pazuello e Marcelo Queiroga, além do ex-ministro da Defesa Walter Braga Neto, romperam com a tradição de saúde pública do país, optando por medidas contrárias às normas sanitárias, evidências científicas e orientações internacionais. “Esses representados fizeram uma ruptura deliberada com nossa tradição de saúde pública. Eles desrespeitaram reiteradamente e intencionalmente as normas sanitárias, as evidências científicas e as orientações internacionais para controle da pandemia”, reforçou.
Durante o enfrentamento da pandemia, Bolsonaro expressou publicamente sua oposição a práticas como o isolamento social e as campanhas de vacinação, que ele afirmou serem prejudiciais à economia nacional. Além disso, a administração adotou medidas como a promoção de medicamentos sem eficácia comprovada contra a Covid-19 e o incentivo à imunidade de rebanho por contágio, contrariando recomendações científicas. Essas ações são apontadas no requerimento como parte de uma “sabotagem” do governo para limitar o controle e a prevenção da Covid-19.
Impunidade e expectativa de ação do STF
Marina destacou a importância da CPI da Covid como um marco histórico e disse que a representação agora apresentada pelo CNDH e CNS “inova ao abordar os crimes contra a saúde pública e a ordem pública com base no descumprimento reiterado das normas sanitárias brasileiras”. Segundo ela, as análises feitas pela CPI, juntamente com estudos realizados por instituições como a Universidade de São Paulo (USP) e a Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), revelam centenas de atos dos agentes públicos que desrespeitaram suas obrigações de forma sistemática e intencional.
Ela ressaltou que, apesar das evidências, Bolsonaro e seus ex-ministros ainda não foram responsabilizados criminalmente. “Já se passaram três anos e todos os quatro representados não foram responsabilizados criminalmente pelos crimes contra a população brasileira, contra a saúde pública e contra a administração pública”, afirmou. O CNDH e o CNS esperam que a PGR apresente a denúncia ao Supremo Tribunal Federal (STF) contra os ex-gestores, para que respondam judicialmente pelos atos cometidos durante a pandemia.
Receptividade e esperança na responsabilização
A presidenta do CNDH mostrou-se confiante no processo de responsabilização, destacando que a representação foi recebida com seriedade pela PGR. “Acreditamos que a PGR vai analisar nossa peça, que está muito bem fundamentada, e que essa responsabilização, de fato, vai acontecer”, disse Marina, afirmando que o documento entregue à PGR está estruturado de modo a fornecer base legal para a denúncia e considerando todas as evidências de descumprimento das normas sanitárias e violação do direito à saúde.
O CNDH e o CNS reforçam a urgência de uma resposta por parte do sistema judiciário para garantir que a impunidade não prevaleça e que os direitos da população sejam defendidos. Marina destacou que a negligência dos ex-gestores em seguir as diretrizes sanitárias do SUS resultou em um cenário de tragédia e sofrimento, o que não pode ser ignorado.
Confira requerimento na íntegra
Compromisso com o direito sanitário e a memória
No encontro realizado em Brasília nesta quinta-feira, representantes do CNS, CNDH, Conecta Direitos Humanos, Associação Vida e Justiça, Associação de Vítimas e Familiares de Vítimas da Covid-19 (Avico Brasil), e Associação dos Servidores da Fundação Oswaldo Cruz (ASFOC-SN) enfatizaram a importância da responsabilização. Fernando Pigatto, presidente do CNS, destacou a relevância do Brasil como signatário de compromissos científicos internacionais, afirmando que “o fortalecimento do Estado brasileiro, assim como da Democracia e do Estado Democrático de Direito, é fundamental”.
A presidenta do CNDH destacou o compromisso dos conselhos em “defender os direitos humanos e a responsabilização dos agentes públicos que foram causadores de milhares de mortes durante a pandemia da Covid-19”. O vice-presidente do CNDH, André Carneiro, ressaltou que o processo será conduzido sob a ótica do direito sanitário, uma abordagem essencial para assegurar que a análise considere o impacto das políticas de saúde pública e sua efetividade.
Sílvio Roberto Amorim, procurador regional da República e secretário de relações institucionais da PGR, que recebeu a comitiva em Brasília, defendeu que a PGR atuará observando as particularidades do caso, incluindo a perspectiva de direitos humanos: “O MPF é a casa da garantia dos direitos humanos, e a PGR tem essa dimensão”.
Gabriel Sampaio, diretor da Conecta Direitos Humanos, detalhou que o processo foi elaborado com o apoio da Universidade de São Paulo (USP) e pontua práticas que deverão ser investigadas, incluindo a promoção de aglomerações e a recomendação de medicamentos ineficazes. Segundo Sampaio, a OMS havia estimado que o Brasil tinha infraestrutura para responder adequadamente à crise sanitária, mas o país chegou a 600 mil mortes, 10% das mortes globais por Covid-19. “Se estivesse na média mundial, o Brasil teria registrado cerca de 130 mil mortes”, revela Sampaio, indicando uma grave falha administrativa.
A preocupação dos conselhos vai além da responsabilização imediata. Eles alertam que a falta de ações judiciais enfraquece o arcabouço jurídico brasileiro, dificultando a resposta a futuras emergências de saúde pública. Com o requerimento na PGR, os conselhos esperam que as investigações avancem no Supremo Tribunal Federal (STF), trazendo justiça às vítimas e garantindo o direito à memória e à verdade para toda a população brasileira.
(por Cezar Xavier)