Segurança pública precisa avançar para além da repressão e do encarceramento
Tradicionalmente instrumentalizado pela direita, o enfrentamento à violência sempre teve como ênfase medidas voltadas a aumentar a repressão, o encarceramento, a truculência policial e o armamento da população, defendidas por meio de um discurso alarmista, histriônico e demagogo que procura explorar o medo e entregar pseudo-soluções simplistas.
“A extrema direita capturou há tempos a discussão da segurança pública, conclamando para si o título de especialista. Desde os anos 1980, ela verbaliza que direitos humanos são direitos de bandidos e que a esquerda que defende direitos humanos também defende bandido”, aponta Vanessa Orban, socióloga da USP que vem se dedicando a estudos no âmbito da segurança pública.
No entanto, é evidente que, ao longo de décadas, as “saídas fáceis” oferecidas por esse segmento político não apenas não mitigaram o problema como resultaram em mais violência e letalidade, que atingem sobretudo os mais pobres e os negros.
“Se fosse uma equação tão simples, os lugares onde existe maior operativo policial, mais armas ou maior liberdade de repressão teriam menos crimes, mas isso não ocorre. Basta olhar a situação do Rio de Janeiro que passou por várias intervenções militares do Exército, e nem por isso conseguiu combater o crime organizado ou a criminalidade mais rotineira”, diz Vanessa.
A sensação de piora na área da segurança pública pode ser verificada em pesquisas e levantamentos recentes. Uma delas, da Quaest, divulgada em março, mostrou que para 79% dos brasileiros, a violência aumentou.
Segundo dados do Anuário 2024 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, houve queda em “crimes de rua” como roubo de celular e de veículos em 2023, mas por outro lado cresceram o alcance e a atuação das organizações criminosas e os crimes contra as mulheres, por exemplo.
Municípios de Norte a Sul do Brasil vêm seus territórios cada vez mais tomados por atividades ligadas ao crime organizado, que engloba tanto o tráfico e certos tipos de assalto quanto as ações das milícias, muitas vezes travestidas de benfeitoras das comunidades. De acordo com pesquisa Datafolha divulgada no início de setembro, 23 milhões de brasileiros (14%) disseram viver em territórios onde há atuação de facções e milícias.
Essa realidade vem se refletindo em cidades fora dos grandes centros urbanos. Segundo o Anuário 2024, o município que registrou a maior taxa de mortes violentas intencionais (MVI) foi Santana, no Amapá, cujo índice saltou 88% entre 2022 e 2023, saindo de 49 para 92 mortes violentas intencionais por 100 mil habitantes. O Amapá, aliás, foi o estado com maior índice de MVI, 70 por 100 mil habitantes — a média nacional é de 22,8; São Paulo teve a menor taxa, 7,8.
Uma das principais razões para situações como essa, enfrentadas em várias cidades do país, são as disputas de mercados e pontos de venda de drogas entre as diversas facções de base prisional e milícias que controlam territórios de forma armada e violenta.
Outro fator importante a ser resolvido é a alta letalidade policial. Embora o período estudado pelo Fórum tenha apresentado redução de 3,4% nas MVIs — que continuam altíssimas, registrando mais de 46 mil vítimas —, a letalidade policial explodiu em 189%, fazendo, somente em 2023, mais de seis mil vítimas, 82% delas negras e 72% jovens entre 12 e 29 anos.
Vale destacar que entre 2017 e 2022, o Brasil passou a viver sob o signo da liberalização do acesso às armas de fogo, que avançou 227% no período, sem que isso tenha se refletido na melhora do quadro violento do país, ao contrário do que dizem seus defensores. Parte nada desprezível dessas armas, aliás, foi parar nas mãos de criminosos, de maneira voluntária ou involuntária, como vêm mostrando operações e estudos recentes.
“Mais armas em circulação possibilita mais acesso por parte dos criminosos. Isso é fato verificado em várias pesquisas e em relatos de investigações policiais robustas. O crescimento exponencial dos CACs vai acarretar inevitavelmente maior acesso de armas aos criminosos, uma vez que agora é possível conseguir mais armas por meio de um laranja ou mesmo roubando dos CACs”, explica Vanessa.
Ela acrescenta que “o mercado ilegal de roubos de armas tende a jogar mais energia neste novo nicho de mercado que se abre de forma legalizada e em abundância. Este foi um dos legados do governo Bolsonaro para o Brasil, que, a médio prazo, tende a aumentar a criminalidade violenta”.
Mudança de foco
Considerando esse cenário complexo e multifacetado e o explícito fracasso das falsas soluções oferecidas pela direita, as eleições de 2024 podem ser uma janela de oportunidade para que o país avance para outra lógica de combate à violência, diferente do que foi majoritariamente aplicado até hoje, ainda que o tema da segurança seja mais atinente aos estados e à União.
“Temas relacionados à segurança pública sempre se fizeram presentes nas campanhas eleitorais, sobretudo nas campanhas aos Executivos municipal ou estadual, por impactarem de maneira mais perceptível o cotidiano das pessoas e por essas instâncias atuarem mais diretamente nessa área. Contudo, desde o pleito de 2016, observa-se que eles ganharam maior relevância nas disputas”, aponta Natasha Bachini, pesquisadora de pós-doutorado no Núcleo de Estudos da Violência (NEV/USP).
Ela argumenta que, no contexto de crise econômica, política e, especialmente, com o aumento da sensação de insegurança na população na última década, “políticos de direita e extrema-direita recolocaram essa pauta no centro do debate político a partir de propostas de recrudescimento e maior rigor punitivo, como a redução da maioridade penal, o fim das saídas temporárias, o aumento das penas em geral, e ainda a proposição do armamento da população e de uma atuação mais ostensiva das polícias, a partir do excludente de ilicitude. Nestas narrativas se faz uma associação entre segurança e moralidade. Tais procedimentos seriam fundamentais para proteger o chamado ‘cidadão de bem’ e sua família, e o trabalho das polícias e Forças Armadas era constantemente elogiado e exaltado”.
A pesquisadora pontua, ainda que “a despeito da derrota de Jair Bolsonaro em 2022, maior representante desse discurso, e dos escândalos envolvendo o ex-presidente e seus aliados que se sucederam — como a invasão e depredação da Praça dos Três Poderes em Brasília — esse enquadramento continua sendo compartilhado por boa parte da população”.
De acordo com Natasha, do NEV, para desconstruir a narrativa superficial e emocional que permeia o debate sobre segurança pública e que se funda em sentimentos negativos, como o medo, a raiva e vingança, “precisamos mostrar dados sobre a área e mobilizar experiências bem-sucedidas de outras cidades para lidar com as questões e, principalmente, não perder de vista nosso entendimento sobre a origem do problema da violência, que está nas desigualdades sociais, não na natureza humana”.
Na próxima matéria, o Vermelho aborda o papel dos municípios no enfrentamento à violência e o debate no âmbito das eleições deste ano.