Submissão a ditames de Washington provoca crise na Alemanha e a derrota fragorosa de Scholz | Foto: Tobias Schwarz/AFP

O primeiro-ministro social-democrata Olaf Scholz foi o grande derrotado nas eleições do domingo em dois Estados alemães da região oriental, a Turíngia e a Saxônia, com sua coalizão Semáforo quase desaparecendo ali.

O partido de Scholz obteve minguados 6,1% na Turíngia – seu pior resultado de sempre – e 7,6% na Saxônia. Enquanto os verdes, com 3,2%, ficaram sem representação parlamentar na Turíngia por causa da cláusula de barreira de 5% e escaparam por um triz no Estado vizinho, com 5,1%.

Já os liberais do FDP ficaram de fora nos dois Estados, mal chegando a 1% na Turíngia e menos ainda na Saxônia. A coalizão governista é apelidada de Semáforo por causa das cores dos partidos que a constituem (vermelho do SPD, verde dos Verdes e amarelo do FDP).

Segundo a Deutsche Welle, “nunca os partidos que formam a coalizão do governo federal obtiveram, conjuntamente, um resultado tão ruim em eleições regionais”.

O resultado, que nada teve de inesperado, serve de péssimo agouro para o governismo quanto às eleições gerais em setembro do próximo ano, em meio à estagnação econômica em curso, perdas salariais recordes, desindustrialização, conclamações ao rearmamento, desgaste pelo apoio militar e financiamento ao regime de Kiev, tudo isso culminando no anúncio de Washington de que reinstalará em solo alemão mísseis intermediários norte-americanos, tornando Berlim, como nos idos de 1980, em um alvo da guerra nuclear. E, ainda, pelo endosso ao genocídio perpetrado por Israel em Gaza.

A direita tradicional – sabidamente foi muito rala a desnazificação pós-II Guerra na Alemanha ocidental -, que opera sob a legenda da “democracia cristã” (CDU), ficou em primeiro na Saxônia, com 31,9%, e em segundo na Turíngia, com 23,6% (atrás da AfD).

Resultado que, somado à desgraça de Scholz, foi comemorado pelo dirigente democrata-cristão e primeiro-ministro bávaro, Markus Söder: “o Semáforo não apenas perdeu o rumo. O Semáforo é uma ruína fumegante”.

Scholz, por sua vez, teve de admitir que foi uma derrota “amarga”. Os resultados de domingo são “um terremoto político no leste”, disse o jornal Tagesspiegel. Para os democratas, advertiu o Süddeutsche Zeitung, foi um “resultado alarmante”.

Na extrema-direita, o partido Alternativa para a Alemanha (AfD, na sigla em alemão) ficou em primeiro na Turíngia, com 32,8%, e ligeiramente atrás da CDU na Saxônia (30,6% a 31,9%). Assim, pela primeira vez está na condição de pleitear se tornar governo ou fazer parte – mas todas as demais forças políticas mantém o rechaço a uma composição com a AfD.

Outro grande derrotado nessas eleições regionais foi o partido Die Linke [A Esquerda], que perdeu fragorosamente o único governo estadual que tinha, a Turíngia, depois de apoiar o envio de armas para Kiev e a guerra de procuração da Otan contra a Rússia na Ucrânia: caiu de 31% para 13,1%. O partido chefiava o governo ali há dez anos. Na Saxônia, teve de se contentar com 4,5%.

Em contrapartida o partido de oposição recém fundado, a Aliança Sahra Wagenknecht (BSW), encabeçado pelos parlamentares de Die Linke que romperam com a deriva do partido até à Otan, obteve respectivamente 15,8% e 11,8% dos votos, chamando a defender os direitos sociais, o não envio de armas para Kiev, uma saída diplomática para a crise na Ucrânia e rechaçando a volta dos mísseis dos EUA a solo alemão. Nos dois estados, a BSW se tornou a terceira força política.

Para a líder do partido, Sahra Wagenknecht, a coalizão Semáforo foi “justamente punida” porque decidiu ignorar o povo. Quando questionada se achava que Scholz deveria pedir um voto de confiança ao Bundestag, ela disse: “Seria apropriado”.

Curiosamente, a AfD tem uma posição mais independente daquela da coalizão Semáforo e da democracia-cristã, em relação à guerra por procuração da Otan contra a Rússia na Ucrânia, sendo contra o envio de armas.

Em tom de alarme, alguns analistas viram na “vitória da AfD” no domingo uma repetição da primeira vitória nazista na Alemanha, que foi justo nesse Estado. Peneirando bem, seria difícil não achar na velha democracia-cristã alemã uns tipos “sulfurosos”, como alguns agora vistos na AfD. Aliás, não só lá, como praticamente em todas as instituições instauradas pela ocupação norte-americana, em prol da centralidade à Guerra Fria.

O problema é que a cartilha dos candidatos ao antifascismo de plantão na Alemanha atual não vêem contradição entre esse recém descoberto antifascismo e o apoio aos neonazis de Kiev e ao genocídio em Gaza, como é o caso do atual governo alemão.

Também é improvável um antifascismo consequente que conviva com a subserviência a Washington, como o atentado aos gasodutos NordStream, a reinstalação de mísseis norte-americanos em solo alemão, a ampliação da Otan, e inclusive com a provocação à China via extensão ao Pacífico dessa aliança colonial.

Nessa situação, possivelmente Scholz é o mais invertebrado primeiro-ministro que a Alemanha do pós-guerra já teve, capaz de engolir sem engasgar o atentado que cortou o sangue vital da indústria alemã, o gás russo, e até de confirmar que foi avisado por Washington da decisão dos EUA de reinstalar mísseis em solo alemão.

Sem dúvida, pesou na eleição de domingo a comoção causada pelo assassinato, poucos dias antes do pleito, de três pessoas em um festival de rua de Soligen, no oeste da Alemanha, em que foi preso, como suspeito da chacina, um homem sírio que seria deportado. O que sem dúvida caiu como um prato feito para a AfD.

Mas ver a questão da tensão na sociedade alemã como expressão unicamente de xenofobia e neonazismo enrustidos é uma simplificação. Na realidade, o problema passou a ter o vulto atual quando, em razão da investida dos EUA contra a Síria, de que o governo de Berlim foi cúmplice, milhões de sírios foram empurrados para a Europa, um milhão deles para a Alemanha. Isso depois da crise europeia e consequente arrocho pós-crash de 2008. O que foi precedido pela intervenção da Otan na Líbia, empurrando multidões de refugiados de guerra e refugiados da ‘austeridade’ do FMI para cruzarem o Mediterrâneo. Questão à qual o BSW tem buscado dar uma resposta.

Mas a questão de fundo que explica o avanço da AfD, de acordo com estudo de dois renomados economistas alemães, Tom Krebs e Isabelle Weber, é que os trabalhadores alemães foram submetidos às “maiores perdas salariais reais da história alemã do pós-guerra”, sob a recessão das sanções, muito pior do que no crash de 2008 e no lockdown do coronavírus. No início de 2024, “a produção agregada seguia 7% abaixo e os salários reais 10% abaixo” dos valores de antes da crise.

Conforme o estudo, sob crise energética de 2022, decorrente da política de Berlim de aderir às sanções dos EUA contra a Rússia e descartar o gás russo mais barato, diante do conflito na Ucrânia, os trabalhadores de colarinho azul e colarinho branco alemães tiveram que aceitar as “maiores perdas salariais reais da história alemã do pós-guerra”.

Krebs foi conselheiro do agora primeiro-ministro Scholz, quando este era ministro das Finanças, e é membro científico da Comissão do Salário Mínimo. Weber, que leciona nos EUA, integrou o conselho consultivo do atual ministro da Economia, o verde Robert Habeck.

Segundo o estudo, a reação tardia do governo Scholz à crise energética – o freio à escalada do preço da energia – implicou em uma “redução acentuada do padrão de vida, com a qual as pessoas foram confrontadas”, o que explicaria em boa medida o avanço da AfD.

Há indícios de que o muro de contenção à AfD não será rompido na Turíngia, nem na Saxônia. Mas persiste o problema de como unificar as forças democráticas para constituir governos com sustentação suficiente, com a CDU sendo o articulador chave nos dois casos, e que assegurou que não vai se compor com a AfD. Por exemplo, a CDU é proibida por uma resolução da direção nacional, de 2017, de compor com Die Linke.

“Sem nós, não é possível mais haver um governo estável”, ameaçou uma das líderes da AfD, Alice Weidel. O primeiro-ministro Scholz chamou a constituir governos de unidade, excluída a AfD.

Já a BSW assinalou que sua principal condição para participação é que “os futuros governos estaduais se oponham claramente à instalação na Alemanha dos novos mísseis de médio alcance dos EUA”. E um posicionamento “pela paz, por uma via diplomática” para fim do conflito na Ucrânia.

Fonte: Papiro