Foto: Ricardo Stuckert / PR

Parte do forte discurso feito pelo presidente Lula na abertura da 79ª Sessão da Assembleia Geral das Nações Unidas foi em defesa de uma reforma do sistema financeiro global.

Na oportunidade, o presidente fez um apelo para que os países de renda média e baixa possam ter melhores condições de empréstimos, uma vez que as dívidas que possuem impedem investimentos em diversas áreas como saúde e educação, por exemplo.

Com isso, Lula quis dizer o simples: de nada adianta a cobrança por um mundo que enfrente as desigualdades e a mudança do clima, como pregam os países ricos, se nada muda em termos financeiros.

Como ilustração (confira o trecho completo da fala sobre finanças ao final), o líder brasileiro colocou que “países da África tomam empréstimo a taxas até 8 vezes maiores do que a Alemanha e 4 vezes maior que os Estados Unidos”.

Para ele isto é “um Plano Marshall às avessas, em que os mais pobres financiam os mais ricos”. O Plano Marshall foi um programa de ajuda econômica dos Estados Unidos para a reconstrução da Europa Ocidental no pós 2º Guerra Mundial.

A cobrança tem como finalidade ampliar também a voz dos países em desenvolvimento e nações menores nas discussões do FMI (Fundo Monetário Internacional) e do Banco Mundial.

E Lula fala de um lugar importante, sendo que o Brasil nos seus primeiros governos pagou todas as dívidas com o fundo e passou a ser credor. No entanto, a sub-representação do Sul Global não foi alterada no período.

Foto: Ricardo Stuckert / PR

Mas a fala na abertura da sessão da Assembleia Geral não foi a única. Durante a Cúpula do Futuro, no dia 22, Lula ainda disse que “as instituições de Bretton Woods desconsideram as prioridades e as necessidades do mundo em desenvolvimento. O Sul Global não está representado de forma condizente com seu atual peso político, econômico e demográfico”.

Bretton Woods foi uma conferência realizada em 1944, onde líderes de 44 países estabeleceram o novo sistema financeiro internacional, criando o FMI e o Banco Mundial, além de estabelecer o padrão dólar norte-americano em substituição ao padrão ouro para o câmbio internacional, o que transformou a moeda dos EUA na principal moeda de reserva mundial.

Já na quarta-feira (25), na reunião ministerial do G20, reforçou o tema ao dizer que é necessário: “eliminar o caráter fortemente regressivo da arquitetura financeira internacional. Países em desenvolvimento enfrentam custos e dificuldades desproporcionais na obtenção de financiamento em comparação com os países ricos. As taxas de juros impostas a países do Sul Global são muito mais altas do que as aplicadas às nações desenvolvidas”.

Para entender a defesa veemente feita por Lula, conversamos com o professor de economia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Marcelo Fernandes.

No entendimento do professor o discurso do presidente vai pelo caminho correto: “A atual arquitetura financeira internacional, ainda dominada pelas instituições de Bretton Woods, é comandada pelo Ocidente, em especial pelos EUA. Possuem uma visão ortodoxa em relação ao funcionamento da economia e conservadora na política. Mas qual o problema? Alguns países da África não têm condições de tomar emprestado com taxa de juros zero, o que dirá sob as condições citadas pelo presidente. Por outro lado, embora ainda estejam sub-representados, os países em desenvolvimento melhoraram sua posição no FMI na última década, tendo mais poder de voto. Além disso, a moeda da China passou a fazer parte da cesta de moedas da unidade de conta FMI, os Direitos Especiais de Saque, desde 2016.”, explica.

O economista Marcelo Fernandes (UFRRJ)

Sobre o “Plano Marshall às avessas”, dito pelo presidente, ele enxerga que é apenas uma questão de retórica: “[No entanto] o aumento do poder dos países em desenvolvimento não só é factível, como deverá ocorrer, caso o Brasil e outros países como China e Índia continuem insistindo.  Lembro ainda que Lula é um dos principais líderes no mundo a pedir reformas na arquitetura financeira desde a crise financeira de 2008 quando ele estava no seu segundo mandato”, diz.

Conforme entende Fernandes, a própria constituição do BRICs (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) se insere nesta questão. Como coloca, na primeira reunião do BRICs, realizada em junho de 2009, na Rússia, foi produzido um documento com a seguinte passagem: “As economias emergentes e em desenvolvimento devem ter mais voz e representação nas instituições financeiras internacionais e seus líderes e diretores devem ser designados por meio de processos seletivos abertos, transparentes e baseados no mérito.”

Sobre se uma provável melhora na posição dos países em desenvolvimento ser suficiente para mudanças no sistema financeiro internacional tradicional, o professor é categórico: “Eu acredito que não”.

Nesse sentido, explica que este é um dos motivos para outras apostas feitas, ainda que, por agora, sejam incipientes: “Por exemplo, os EUA são o único país com direito a veto no FMI. E os países da União Europeia também são normalmente bastante conservadores. Daí a aposta em alternativas como o Novo Banco de Desenvolvimento, também conhecido como Banco dos Brics, que infelizmente continua muito aquém do que se espera dele”, afirma.

De acordo com Fernandes, quem tem feito frente de maneira mais plausível ao sistema estabelecido em Bretton Woods é a China.

“Ainda que a pressão do Brasil seja importante, quem está fazendo a diferença é a China. Por motivos óbvios: é a única com poder econômico e político para forçar uma reforma na arquitetura financeira internacional, e mesmo assim, com muita dificuldade, dado o poder estrutural que os EUA ainda dispõem e a vassalagem da maior parte dos países do Ocidente aos ditames de Washington”, aponta.

O economista destaca duas iniciativas da China nesta empreitada, ambas com oposição frontal dos EUA.

“Iniciativas importantes têm acontecido, entre elas o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (BAII), um banco de desenvolvimento multilateral fundado em 2015. O Brasil ingressou como sócio em 2021, mas ainda tem participação muito tímida no BAII. E a internacionalização do China Development Bank (CDB) a partir de 2015, tornando-se um dos principais instrumentos da Belt and Road Initiative (BRI) [também conhecida como Nova Rota da Seda]. O Banco vem dando apoio financeiro aos países em desenvolvimento por meio de empréstimos e financiamentos em condições muito mais favoráveis que as instituições financeiras tradicionais que Lula critica. Por acaso, o CDB tem um escritório justamente no Rio de Janeiro”, conclui Fernandes.

Confira abaixo a fala completa de Lula no que diz respeito aos recursos financeiros, proferida na Assembleia Geral da ONU:

“As condições para acesso a recursos financeiros seguem proibitivas para a maioria dos países de renda média e baixa. O fardo da dívida limita o espaço fiscal para investir em saúde e educação, reduzir as desigualdades e enfrentar a mudança do clima.

Países da África tomam empréstimo a taxas até 8 vezes maiores do que a Alemanha e 4 vezes maior que os Estados Unidos. É um Plano Marshall às avessas, em que os mais pobres financiam os mais ricos.

Sem maior participação dos países em desenvolvimento na direção do FMI e do Banco Mundial não haverá mudança efetiva. Enquanto os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável ficam para trás, as 150 maiores empresas do mundo obtiveram, juntas, lucro de 1,8 trilhão de dólares nos últimos dois anos.

A fortuna dos 5 principais bilionários mais que dobrou desde o início desta década, ao passo que 60% da humanidade ficou mais pobre. Os super-ricos pagam proporcionalmente muito menos impostos do que a classe trabalhadora. Para corrigir essa anomalia, o Brasil tem insistido na cooperação internacional para desenvolver padrões mínimos de tributação global.”

Foto: Ricardo Stuckert / PR