Leci Brandão chega aos 80: palcos, plenário e terreiro da quebrada
Com oito décadas de vida e cinco de carreira, Leci chega ativa e indispensável, sem vacilar sobre o lado que defende
Leci Brandão discursa durante a sessão solene de entrega do ‘Colar de Honra ao Mérito’ da Assembleia Legislativa de São Paulo.
Em 12 de setembro de 1944, no bairro de Madureira, Rio de Janeiro, nascia Leci Brandão da Silva, uma mulher que se tornaria um ícone do samba e uma referência na política brasileira. Ao longo de sua vida, Leci desafiou convenções e abriu caminhos em espaços historicamente dominados por homens, brancos e heterossexuais. Hoje, ao completar 80 anos, a sambista, atriz e deputada estadual por São Paulo se destaca não apenas por sua voz marcante e suas letras de cunho social, mas também por sua incansável luta pelos direitos das minorias.
Leci chega às 8 décadas de uma vida marcada por contribuições notáveis à música brasileira e à luta por justiça social. Primeira mulher negra e homossexual a integrar a ala de compositores da Estação Primeira de Mangueira, sua trajetória une arte, ativismo e política, sempre em defesa dos mais vulneráveis e oprimidos.
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O pioneirismo no samba
Leci começou sua carreira no samba em 1974, quando gravou seu primeiro compacto, já carregando o pioneirismo que marcaria sua vida. Ser aceita na ala de compositores da Mangueira, um espaço dominado por homens, foi um desafio. “Na minha época, a coisa era infinitamente mais difícil”, relembra Leci, que escreveu uma carta defendendo seu lugar na Mangueira.
Sua entrada na Mangueira, porém, não foi simples. Em um ambiente dominado por cerca de 40 homens, Leci foi desafiada a escrever uma carta explicando por que merecia fazer parte daquele espaço. Comparando a escola a uma “Universidade do Samba”, Leci conquistou seu lugar, mudando para sempre o protagonismo feminino no mundo do samba, até então restrito a posições de musas e dançarinas. Um ano de estágio compondo sambas de terreiro consolidou sua posição na escola, quebrando barreiras e abrindo caminho para outras mulheres.
Seu sucesso musical veio acompanhado de uma postura crítica e engajada. Esse tom foi levado para a Rede Globo, quando comentou o carnaval do Rio e de São Paulo durante 20 anos, marcada não por citar as celebridades desfilando, mas tornando célebres membros anônimos das comunidades. No entanto, suas letras críticas logo a colocaram em rota de colisão com o mercado musical. Seu contrato com uma gravadora multinacional foi rescindido em 1980, mas Leci voltou a gravar em 1985, sem jamais abandonar o tom de denúncia social de suas canções.
Reconhecimento na arte
Ela nunca recuou em suas convicções. Ao longo de sua carreira, lançou 26 discos, entre LPs, CDs e compactos, além de dois DVDs, e ganhou reconhecimento por sua contribuição ao samba com sucessos como “Essa Tal Criatura” e “Zé do Caroço”. Um reconhecimento que sempre veio acompanhado de momentos amargos de narizes torcidos para seu tom de protesto na canção e na postura.
Em 1995, Leci viveu outro marco de sua carreira ao interpretar o samba-enredo da Acadêmicos de Santa Cruz, e em 2012, foi homenageada pela Acadêmicos do Tatuapé, que fez de sua vida o tema do enredo. Essas conquistas mostram o reconhecimento tardio de uma artista que, desde o início, cantou para além das festas, abordando questões de raça, gênero e classe.
Além do samba, Leci tem uma carreira extensa como atriz, participando de produções como Antônia (2010) e Tropa de Elite 2 (2010), além de interpretar a líder quilombola Severina na novela Xica da Silva.
No entanto, foi na política que Leci encontrou um novo palco para suas lutas. Eleita deputada estadual por São Paulo em 2010, tornou-se a segunda mulher negra a ocupar um assento na Assembleia Legislativa de São Paulo. Defendendo causas como a igualdade racial, a valorização da cultura popular, os direitos das mulheres, populações indígenas e quilombolas, além da comunidade LGBTQIA+, Leci mantém sua postura combativa e comprometida com os ideais que sempre nortearam sua vida.
São quatro eleições consecutivas, num crescendo de eleitores, e sempre pelo PCdoB. Leci sabe o peso e a honra de carregar mais de cem anos de histórica comunista. Já disse que se preocupa em manchar essa história de lutas do PCdoB. “Eu tenho orgulho de ser comunista! Eu nunca fui filiada a nenhum outro partido”, disse, muito assertiva, embora prefira dizer que “está” deputada, quando na verdade “é” artista.
A voz das minorias
Leci Brandão sempre usou sua arte para levantar bandeiras, ainda que de forma discreta, assim como ela caminha pela vida. Ainda nos anos 1970, foi uma das primeiras artistas brasileiras a tratar abertamente da homossexualidade em suas músicas. No álbum “Questão de Gosto”, de 1976, lançou a canção “As Pessoas e Eles”, abordando a temática de aceitação e liberdade sexual. Em 2019, regravou Pra Colorir Muito Mais, uma canção em referência à luta pelos direitos da comunidade LGBTQIA+.
Além disso, em entrevistas e nas letras de suas músicas, Leci sempre foi uma defensora firme dos direitos da população negra, LGBTQIA+, e das religiões de matriz africana, enfrentando o racismo e a intolerância religiosa.
Hoje, parece que a idade não pesa, conforme Leci segue dividindo-se entre a música e a política sem deixar cair o pandeiro e o tantam, sendo reconhecida como uma voz firme em defesa da diversidade e da inclusão, além de estar sempre fazendo feat com artistas jovens, principalmente do hip-hop. Sua trajetória, marcada por pioneirismos e lutas incessantes, inspira novas gerações, e sua arte continua a ser um instrumento poderoso de transformação social.
Nesta quinta-feira, Leci celebra suas oito décadas de vida e se consolida como um ícone que transcende o samba, transformando-se em uma figura essencial na luta por justiça e igualdade no Brasil. E no ano que vem, tem mais festa, quando ela celebra 50 anos de carreira.
Leci rima Zé do Caroço com Marielle em Favela Vive 5, do ADL:
(por Cezar Xavier)