“Fim ao envio de armas dos EUA a Israel”, diz faixa na manifestação em Chicago | Foto: Mondoweiss

“Estamos dizendo que queremos um embargo de armas. Estamos dizendo a vocês que queremos um cessar-fogo permanente. E estamos dizendo que os queremos AGORA”, declarou Abdelhadi, uma das oradoras do protesto que reuniu milhares diante do evento que o comando democrata chamou de “Convenção da Alegria e Esperança”, enquanto bilhões em armas seguem em direção aos perpetradores do genocídio em Gaza

A “Convenção da Alegria e Esperança” – assim como classificada pelo alto mando democrata – termina nesta quinta-feira (22) em Chicago, com entronização de Kamala Harris e Tim Walz como a chapa para a disputa de novembro, e vem sendo realizada em clima de concerto de Beyoncé, depois de um mês de depressão e luto entre os democratas, após o colapso de Joe Biden, aliás, Genocide Joe, segundo as ruas, no debate televisivo com o bilionário fascista Trump.

O colapso de Biden se tornara ainda mais terrível por, em si, retratar a caducidade da ordem unilateral sob Washington em vigor desde a década de 90, de que os tropeções e desorientações do octogenário operativo de Delaware eram um dos sintomas mais evidentes, embora não o único, nem o principal.

A respeitada revista The Nation, em um artigo da edição mais recente, estampa a contradição entre essa pretensão à “Convenção da Alegria” e “os horrores do genocídio” em Gaza, sabidamente em conluio com o fascismo israelense, financiado e encoberto pela Casa Branca, e seu chefe, Biden.

Enquanto a Counterpunch havia advertido sobre as semelhanças da atual crise no Partido Democrata, com a Convenção de Chicago de 1968, após a renúncia à reeleição de Lyndon Johnson, sob os protestos contra a Guerra do Vietnã (hey hey LBJ how many kids did you kill today), em que outra “campanha pela alegria” proclamara candidato a Hubert Humphrey, entusiasta da guerra, e presa fácil para Nixon na eleição.

No primeiro dia da Convenção, manifestantes contra o genocídio em Gaza e que exigem o cessar-fogo e o embargo de armas dos EUA a Israel, despejaram um pouco de vinagre na laranjada adoçada servida no United Center.

Como disse Eman Abdelhadi, uma das oradoras da marcha pelo embargo de armas a Israel, realizada na véspera do início da convenção, exigindo de Kamala Harris mais do que uma “mudança de tom” sobre o genocídio.

“Genocide Joe ainda estaria na chapa se não fosse por esse movimento, por todos nós. Nosso movimento é uma das principais razões pelas quais você agora é a candidata democrata à presidência no país mais poderoso do planeta.”

“Você, vice-presidente Harris, pode concorrer ao cargo porque expulsamos seu antecessor aqui mesmo nestas ruas. Mas nunca foi apenas sobre ele. Era sobre os 40.000 palestinos que ele ajudou a matar.”

Ela continuou: “estamos dizendo que ‘Não é o outro cara’ não é uma plataforma. Estamos dizendo que você tem que efetivamente de merecer os nossos votos. Estamos dizendo que queremos um embargo de armas. Estamos dizendo a vocês que queremos um cessar-fogo permanente. E estamos dizendo que os queremos AGORA.”

Já no enorme recinto da convenção, prevalece certa histeria ‘alegre’, com convencionais, lobistas e seus chegados em estado de graça por terem se livrado do estorvo que Biden se tornara, a ponto da ponto da ex-primeira-dama, Michelle Obama, advertir em seu discurso contra a complacência, reafirmando que a eleição “será acirrada” e que em alguns estados “apenas um punhado, ouçam-me, um punhado de votos em cada seção eleitoral pode decidir o vencedor”.

O que, mesmo com o maior protesto diante de uma convenção em meio século, não impediu a alta cúpula democrata de negar o palco principal à médica Dra. Tanya Hajj-Hassan, dos Médicos Sem Fronteiras, que presenciou – e denunciou – o inaudito sofrimento das crianças palestinas mutiladas pelas bombas israelenses fornecidas pelos EUA.

Em suma, a alta direção democrata se nega a perceber que o mesmo efeito que as fotos do massacre de Mi Lai e das crianças atingidas pelo napalm tiveram na opinião pública durante os anos 1960 se repete agora, nas cenas que chocam o mundo inteiro, via internet, de um genocídio que já dura dez meses, e que não poupa crianças, nem mulheres, nem velhos, nem mesquitas, nem escolas.

Até quarta-feira, o comando democrata havia se recusado a conceder cinco minutos no palco principal, pedidos pelos representantes dos 740 mil votos “não comprometidos” das primárias democratas, cuja única exigência é o fim do apoio da Casa Branca ao genocídio, cessar-fogo e embargo de armas a Netanyahu. E com a eleição podendo ser decidida em um ou dois estados, por exemplo, o Michigan, de expressiva população muçulmana.

Um episódio, registrado na plataforma Reddit, registra a que extremos pode chegar esse recusa a ver, no próximo, a humanidade intrínseca de cada um de nós.

Convencionais que se encaminham para o centro de convenções, ao se depararem com manifestantes contra o genocídio que gritam os nomes das mais de 16 mil crianças assassinadas em Gaza pelos bombardeios israelenses, reagem caçoando ostensivamente, rindo ou tampando os ouvidos ou os olhos. Alguns, mais normais, simplesmente ignoram.

O escritor Norman Salomon, na Counterpunch, havia se indignado com a adulação a Biden, que, seis dias depois de assinar o envio de mais US$ 20 bilhões de armas a Israel e de ter enviado dezenas de milhares de bombas para o genocídio, disse no seu discurso de despedida à convenção que “continuaremos trabalhando para trazer reféns para casa, acabar com a guerra em Gaza e trazer paz e segurança ao Oriente Médio”.

Ele disse, ainda, que redigiu “um tratado de paz para Gaza”, quando se sabe que, para o genocídio, Israel depende em 90% das bombas fabricadas, fornecidas e pagas – sim pagas – pelos EUA.  

Biden continuou: “estamos trabalhando 24 horas por dia, meu secretário de Estado, para evitar uma guerra mais ampla e reunir reféns com suas famílias, e aumentar a assistência humanitária de saúde e alimentação em Gaza agora, para acabar com o sofrimento civil do povo palestino e finalmente, finalmente, finalmente entregar um cessar-fogo e acabar com esta guerra.”

Um escárnio à verdade, embora recebido com cinco minutos de adulação, de “amamos você”, dos presentes por ter virado carta fora do baralho, enquanto uma faixa exigindo o embargo de armas era arrancada do plenário.

Como registrou Salomon, “ressaltando a grotesca obtusidade moral do palco da convenção estava a exibição alegre de gerações enquanto o presidente elogiava e abraçava sua prole. Joe Biden saiu do palco segurando a mão de seu lindo netinho, uma criança preciosa não mais preciosa do que qualquer uma das muitas milhares de crianças que o presidente ajudou Israel a matar”.

De volta ao discurso de Eman Abdelhadi em Chicago. “A maioria dos americanos, em pesquisa após pesquisa, diz que desaprova as ações de Israel em Gaza. Estudo após estudo mostra que um embargo de armas lhe renderia mais votos, garantiria esta eleição. Vice-presidente Harris, por que você está arriscando o fim da democracia, a ascensão do fascismo, o retorno de Trump para proteger a guerra de Netenyahu contra as crianças?”

“Você não é a protetora da democracia. Somos nós os protetores da democracia. Se você quer ver a democracia, olhe para as ruas de Chicago esta semana. Somos a democracia voltando ao poder, dizendo que não seremos ignorados.”

“Queremos abrigar nossos desabrigados. Queremos alimentar nossos famintos. Queremos curar nossos doentes. Queremos proteger nosso planeta. Queremos construir nosso futuro, não roubar os filhos de Gaza.”

“Você pode pensar que as pessoas que chegam ao United Center hoje são as que moldam o futuro deste país. Isso não é verdade. Nós fazemos o futuro deste país. Chegamos onde sempre chegamos, aqui mesmo nas ruas.”

“Vice-presidente Harris, você tem uma escolha. Você pode se juntar a um movimento por justiça. Você poderia fazer um lugar para si mesmo na história. Você pode ser uma líder que escolheu ouvir seu povo em vez dos interesses dos fabricantes de guerra. Ou você pode ajudar e encorajar um criminoso de guerra.”

“Vice-presidente Harris, se você quer que Donald Trump vença, diga isso. Ouça-nos. Não seremos aplacados pelo tom. Precisamos que você aja – e não sairemos das ruas até que você o faça.”

No seu derradeiro discurso, em um momento cada vez mais raro de sanidade, Biden havia dito que “estamos num ponto de inflexão. É um desses raros momentos na História em que as decisões que tomarmos agora vão determinar o futuro durante décadas”.

Ou falta de futuro, como alertou a fundadora da entidade pacifista norte-americana Code Pink, Medea Benjamin, que escreveu que “poucos dos delegados parecem perceber que seu país está à beira de um envolvimento direto em grandes guerras com a Rússia e o Irã, qualquer uma das quais pode se transformar em uma Terceira Guerra Mundial”. Na verdade, Washington também se apressa a fazer do Estreito de Taiwan um terceiro foco de guerra, contra a China.

Medea observou que “os assassinatos em Beirute e Teerã [por Netanyahu] foram claramente planejados para provocar uma resposta do Irã e do Hezbollah que atrairia os EUA para a guerra”. Ao que se soma a recente incursão da Ucrânia na Rússia, aplaudida por grande parte do Ocidente.

“O presidente Volodymyr Zelenskyy permanece no poder três meses após o término de seu mandato e é um grande admirador de Israel. Ele pegará uma página do manual de Netanyahu e fará algo tão provocativo que atrairá as forças dos EUA e da OTAN para a guerra potencialmente nuclear com a Rússia que Biden prometeu evitar?”.

Fonte: Papiro