Kamala Harris, candidata a presidente aprovada pela Convenção Democrata | Foto: Reprodução

Enquanto o mundo arde, com a guerra por procuração da Otan contra a Rússia na Ucrânia, a mais perigosa confrontação desde a crise dos mísseis no Caribe; com o genocídio em Gaza que Netanyahu tenta transformar em uma guerra generalizada no Oriente Médio; mais a tentativa de fabricar uma ‘Otan do Pacífico’ para fechar o cerco à China; e quando a Federação dos Cientistas Americanos adianta seu Relógio do Juízo Final para 90 segundos para a Meia Noite, a parte sobre as relações externas do discurso de aceitação de Kamala Harris na Convenção Nacional Democrata de Chicago foi de uma pobreza extrema, em meio ao clima de catarse, depois da experiência de quase morte com o colapso da candidatura octogenária de Joe Biden e repercussão da foto ‘Iwo Jima’ pós-atentado contra Trump.

Enquanto os líderes da China e da Rússia, em consonância com o clamor dos tempos, têm assinalado que o mundo passa por enormes transformações, que conduzem à superação da ordem unilateral sob o tacão de Washington, e convocado à democratização das relações internacionais e dos frutos do desenvolvimento, sob soberania e respeito mútuo, que Pequim sintetizou sob a forma de “uma comunidade de futuro compartilhado para a humanidade”, a noviça Kamala aferrou-se à versão mais rasteira da “cidade brilhante na colina”, a obsessão ianque pelo “excepcionalismo”.

Noves fora, traduzido pela candidata na promessa de que a América sempre terá “a força de combate mais forte e letal do mundo”.

Uma afirmação um tanto prejudicada pela retirada de Cabul, que a muitos relembrou outra, a de Saigon. Mas foi com essa apreciação que Kamala anunciou ao mundo seu horizonte quanto à relação com os demais povos.

A irrupção de um mundo em que o imperialismo seja escanteado, rumo à lata de lixo da história, e onde a desdolarização avança, para a substituta em 5 de novembro de Biden pode ser reduzida à promessa de que ela irá garantir que “lideremos o mundo para o futuro no espaço e na inteligência artificial” e que a “liderança global” continuará com os EUA e não a China.

Quanto à Rússia, a substituta de Biden se gabou de ter “cinco dias antes de a Rússia atacar a Ucrânia” se encontrado com Zelensky para “avisá-lo sobre o plano da Rússia de invadir.”

Ainda segundo ela, “ajudei a mobilizar uma resposta global — mais de 50 países — para nos defender da agressão de Putin” e prometeu “como presidente, permanecer firme com a Ucrânia e nossos aliados da Otan”.

Como Kamala é da área do Direito, talvez fosse de bom tom o presidente Biden, que andou dando uma mãozinha no golpe de Kiev de 2014, ter contado a ela que a história é um pouco mais complexa, tendo até lugar para uma diretoria para o filho Hunter numa empresa de gás ucraniana. E que o regime alinhado à CIA perseguiu os ucranianos de ascendência russa, que se revoltaram e iniciaram a libertação do Donbass, houve acordos negociados em Minsk para pacificação, que foram desrespeitados, e que a Rússia só interveio quando era iminente uma operação de expulsão da população de fala russa.

Antes disso, a Rússia propusera aos EUA e a Otan que fosse restabelecida a segurança mútua na Europa e respeitada a neutralidade da Ucrânia, e uma moratória para manter o Tratado de Proibição das Armas Intermediárias na prática, mesmo após ter sido revogado sob o governo Trump. Após a invasão, Ucrânia e Rússia chegaram praticamente a um acordo de manutenção da neutralidade, em negociações em Istambul, que foram a pique com a ida do então primeiro-ministro britânico para comunicar a Zelensky que era pra manter a guerra de qualquer jeito, essa era a ordem de Washington.

Mas para Kamala, não foi a ameaça de volta da situação de quase guerra nuclear que houve nos anos 1980 no teatro europeu que motivou a Rússia, mas o “incentivo de Trump”.

Isso sem falar na guerra econômica dos EUA, acompanhada pelos satélites europeus, com sanções destinadas a por a Rússia de joelhos, tiro que saiu pela culatra, e quem entrou em crise aberta foi a economia europeia, por pagar a preço de ouro o gás de fracking fornecido pelos EUA, no lugar do gás russo barato.

Kamala também conseguiu se superar ao tratar da questão de Gaza, quando chamou o genocídio perpetrado pelo regime Netanyahu/Gvir/Smotrich, sob investigação da Corte Internacional de Justiça da ONU, de “direito de defesa” e ao negar ao movimento dos palestinos pró-democratas pelo cessar-fogo a palavra na convenção.

As redes sociais registraram o momento em que o discurso chega a ser interrompido pelo clamor de “Kamala you can’t hide/ we won’t vote for genocide” [Kamala, você não pode esconder/não votaremos pelo genocídio].

Milhares de manifestantes na abertura da Convenção se manifestaram a favor do cessar-fogo e contra o genocídio, lembrando as manifestações, também em Chicago, em 1968, contra a Guerra do Vietnã.

Com o governo de que é vice tendo enviado milhares de bombas de quase uma tonelada e meia tonelada, sem as quais seria impossível o genocídio ter alcançado a escala de 40 mil palestinos mortos – mais quase 100 mil feridos ou mutilados –, Kamala conseguiu assegurar que Biden e ela estavam “trabalhando dia e noite” pelo cessar-fogo.

O problema em Gaza não seria os “57 anos de ocupação sufocante” de Gaza por Israel, nas palavras do secretário-geral da ONU, mas os “terroristas do Hamas”.

Quando buscou fazer uma média com os eleitores muçulmanos ou palestinos, Kamala se superou, falando das “tantas vidas inocentes perdidas”, “pessoas desesperadas e famintas fugindo em busca de segurança, repetidamente” – como se não fossem as bombas fornecidas por Washington e os facínoras que as utilizam que estivessem chacinando essas pessoas, como se não tivesse havido uma ordem sob ameaça de tiro às pessoas para que “fugissem em busca de segurança”.

“A escala do sofrimento é de partir o coração”, esmerou-se a candidata. Parecia os japoneses, falando da bomba em Hiroshima e Nagasaki, mas sem citarem que foram os americanos que lançaram a bomba.

E no momento que Netanyahu tenta se salvar da prisão, apostando em atrair os EUA para a guerra contra o Irã, e inclusive fazendo uma provocação atrás da outra, até mesmo o assassinato em Teerã do principal negociador do Hamas, Kamala asseverou aos convencionais que nunca hesitaria em “tomar qualquer ação necessária para defender nossas forças e nossos interesses contra o Irã e os terroristas apoiados pelo Irã.”

A candidata democrata também buscou mostrar que está bastante afiada quanto ao meme do Estado Profundo sobre qual seria a grande contradição no planeta da atualidade, democracia versus tirania. Ao invés de ser soberania versus imperialismo, produção versus especulação, concentração de riqueza extrema & monopólios privados versus o direito de todos à vida plena, educação, saúde e segurança.

Ela também endeusou a “maior democracia do mundo” – isso, apesar do apartheid, nos EUA, ter existido por décadas, antes de ser um escândalo na África do Sul, e só demolido sob a luta de gigantes como Martin Luther King e Malcom X.

A “maior democracia do mundo”, sob controle dos bancos, do Big Oil e do complexo industrial-militar, aquele que Eisenhower denunciou como o maior perigo para os EUA. Com suas guerras eternas, golpes de Estado, intervenções, sanções, caos e 800 bases no exterior, com orçamento militar maior do que o dos dez países seguintes, insaciável e com porta giratória entre o Pentágono e os grandes fabricantes de armamentos.

Ou, segundo um atento analista, “a melhor democracia que o dinheiro pode comprar”, ironizando a decisão da Suprema Corte norte-americana de considerar que subornar políticos faz parte da “liberdade de expressão” dos magnatas, autorizando os super PACs, fundos privados de campanha.

Para o premiado jornalista Chris Hedges, foram os cortes de direitos, incentivo à especulação, desindustrialização e guerra atrás de guerra sob Clinton, W. Bush e Obama/Biden, que abriram o caminho para a atual proeminência do fascista Trump.

Naturalmente, Kamala dedicou à China, a assombrosa China, que tirou 1,4 bilhão de pessoas da pobreza e se tornou o coração industrial do mundo, a exortação “Que a América, não a China, vença a competição pelo século 21 e que fortaleçamos, não abdiquemos, de nossa liderança global”.

Em relação à China, talvez Kamala fizesse bem em reler a resposta enviada pelo ex-presidente Jimmy Carter a Trump, quando este o procurou em busca de entender a ascensão chinesa.

“Você tem medo que a China nos supere, e eu concordo com você. Mas você sabe por que a China nos superará? Eu normalizei relações diplomáticas com Pequim em 1979. Desde essa data você sabe quantas vezes a China entrou em guerra com alguém? Nem uma vez, enquanto nós estamos constantemente em guerra.”

“Os Estados Unidos é a nação mais guerreira da história do mundo, pois quer impor aos Estados que respondam ao nosso governo e aos valores americanos em todo o Ocidente, e controlar as empresas que dispõem de recursos energéticos em outros países.”

“A China, por seu lado, está investindo seus recursos em projetos de infraestrutura, ferrovias de alta velocidade intercontinentais e transoceânicos, tecnologia 6G, inteligência robótica, universidades, hospitais, portos e edifícios em vez de usá-los em despesas militares.”

“Quantos quilômetros de ferrovias de alta velocidade temos em nosso país? Nós desperdiçamos U$ 300 bilhões em despesas militares para submeter países que procuravam sair da nossa hegemonia. A China não desperdiçou nem um centavo em guerra, e é por isso que nos ultrapassa em quase todas as áreas.”

Parece que Kamala não tomou conhecimento dessa famosa resposta de Carter e talvez sequer saiba que o produto industrial chinês já é o dobro do norte-americano.

Fonte: Papiro