“Atendi criança que teve a metade do rosto explodida”, relata médica que atuou em Gaza
“Atendi um menino no Departamento de Emergência durante uma das baixas em massa. Uma criança que teve metade de seu rosto e pescoço explodidos”, denunciou em coletiva a Dra. Tanya Haj-Hassan, que já integrou a equipe da organização Médicos Sem Fronteira na Faixa de Gaza.
“A irmã estava na cama ao lado dele. A maior parte do corpo dela foi queimada além do reconhecimento. Ele não reconheceu que a garota ao lado dele era a irmã. A família inteira, seus pais, e o resto de seus irmãos foram mortos no mesmo ataque”, disse ainda a Dra. Tanya na coletiva.
Ela ressaltou que, trazendo estes dois tristes casos, ajudaria a “humanizar” a percepção do que acontece aí: “O que quero dizer, quando digo isso, é porque eu sei que é muito difícil ouvir esses números e pensar nos indivíduos e o que isso significa para eles”.
A seguir principais trechos do depoimento da Dra. Tanya:
“Eu tenho mencionado essas crianças feridas sem familiares sobreviventes e vou trazer duas histórias rápidas, apenas pare que se possa humanizar.
O que quero dizer, quando digo isso, é porque eu sei que é muito difícil ouvir esses números e pensar nos indivíduos e no que significa para eles.
Recebi um menino no departamento de emergência, durante uma das baixas em massa. Ele teve metade de seu rosto e pescoço explodidos. Felizmente, os órgãos que são vitais para respirar e o suprimento de sangue para o cérebro foram preservados
Eles eram visíveis, mas foram preservados. E ele estava falando conosco. Ele não conseguia se ver, então ele não sabia como ele aparentava naquele momento.
E ele continuou perguntando pela irmã dele… A irmã estava na cama ao lado dele. A maior parte do corpo dela foi queimada além do reconhecimento.
Ele não reconheceu que a garota ao lado dele era a irmã…
A família inteira, seus pais e o resto de seus irmãos, foram mortos no mesmo ataque.
Aquele menino sobreviveu e no dia seguinte fui vê-lo. Um cirurgião plástico muito jovem, um dos poucos cirurgiões plásticos restantes em Gaza, porque os outros foram mortos ou tiveram que fugir, emoveu parte de seu peito e criou um enxerto para cobrir aqueles órgãos vitais do pescoço.
O menino estava deitado em sua cama resmungando, porque era tão difícil falar. E ele continuou repetindo. Eu cheguei muito perto dele e ele disse: ‘Eu gostaria de ter morrido também’. E eu disse: ‘O que é isso’? E ele disse: ‘Acho que minha família inteira foi para o céu’.
Suas palavras exatas foram algo esclarecedoras: ‘Todo mundo que eu amo está no céu agora. Eu não quero mais estar aqui’.
Essa é uma das tantas histórias sobre o que acontece por aqui e é uma que estou contando a vocês.
Sinto muito… mas acho que as pessoas precisam ouvir isso. Estou lhes contando a história de uma criança.
Um dos meus colegas profissionais de saúde. Um jovem enfermeiro. Um dos enfermeiros mais dedicados que já conheci. Estava tentando evacuar um paciente quando o Hospital al-Shifa foi bombardeado. Ele carregou aquele paciente.
Ele acabou sendo chamado pelas forças israelenses.
Não pelo nome, mas pelo uniforme: ‘Você, a pessoa de uniforme, venha aqui’.
Ele foi posteriormente detido por 53 dias.
Ele relatou tortura física, sexual e psicológica na prisão. Finalmente libertado porque, alegaram, ele não tinha nenhum crime.
Depois, com ele já solto, trabalhou constantemente por ser tão dedicado, apesar de que sofria de insônia severa, causada pelo trauma de sua detenção.
Ele estava sempre na sala de ressuscitação. No departamento de emergência, limpando areias dos olhos das pessoas retiradas dos escombros. Tentando confortá-los.
Um dia… Durante a noite, ele adormeceu segurando o corpo de uma criança morta, ainda com o tubo de respiração, depois deles não conseguirem ressuscitar o bebê.
Outro dia, eu pedi para ele ir para casa porque ele não dormia há tantas horas. Então ele saiu do hospital e algumas horas depois eu o vejo no departamento de emergência, tentando ressuscitar um homem cujos braços e pernas, desculpem, cujas pernas e um braço foram arrancados.
Eu perguntei o que ele estava fazendo no hospital. ‘Eu pensei que você tinha ido para casa descansar’. E ele disse: ‘Este é o marido da minha irmã’.
‘Eles me acordaram para me dizer que o local de distribuição de ajuda havia sido bombardeado e o marido da minha irmã tinha ido lá. Então fui procurá-lo e o encontrei gravemente ferido’.
Então eu ajudei a ressuscitar esse paciente. Sua casa foi destruída. Ele é um jovem, ele está noivo. Ele está tentando se casar. Tinha uma vida inteira pela frente.
Esta última história, é de um profissional de saúde muito dedicado.
Estou dando duas histórias. De uma criança e de um profissional de saúde.
Mas essas são representativas de, literalmente, quase todo mundo que conheço em Gaza. Eu não conheço um único profissional de saúde que não tenha perdido vários membros de sua família.
“Isso aqui é o pior do que pessoas são capazes de perpetrar”, sintetiza a médica.
Fonte: Papiro