Barco da delegação brasileira participa da abertura em Paris | Foto: AFP

Em uma cerimônia que saiu dos marcos dos estádios para passear pelo Rio Sena, pela Torre Eiffell e pelos jardins das Tulherias ao lado do Louvre, até o acendimento da pira olímpica, estilizada como um grande balão que subiu aos céus, pelos tricampeões olímpicos franceses Marie-José Perec (atletismo) e Teddy Ryner (judô), as Olimpíadas de Paris 2024 formalizaram sua abertura diante de 300 mil pessoas nesta quinta-feira (26), apesar da chuva que não parava, na terceira vez que a capital francesa sedia os jogos e a segunda em um século, com 10.500 atletas de 205 países em 32 modalidades.

Do alto da Torre Eiffell, a cantora canadense Céline Dion concluiu a cerimônia, emocionando a todos com o muito francês “L’Hymne a l’amour” (Hino ao Amor), imortalizado por Edit Piaf, na primeira apresentação dela desde que interrompeu sua agenda de turnês após ser diagnosticada com uma síndrome rara em 2022.

As delegações – verdadeiros astros da festa – desfilaram no Trocadero, na base da Torre Eiffel, com suas cores e bandeiras. Na abertura, também se apresentaram, entre outros, a cantora norte-americana Lady Gaga, Mon Truc en Plumes” (“Minha cena em plumas”), numa referência ao Moulin Rouge.

Não faltou a interpretação por Sofiane Pamart e Juliette Armanet de “Imagine”, de John Lennon, que virou arroz de festa nessas cerimônias, para fazer de conta que as ex-potências coloniais deixaram de lado o belicismo, o racismo e a extorsão.

Uma gigantesca nuvem de fumaça azul, branca e vermelha — as cores da bandeira da França — foi lançada no alto de uma ponte sobre o rio quando a cerimônia começou.

A cerimônia foi dividida em doze etapas, celebrando a história e a cultura francesa, espelhada desde a cantora Axelle Saint-Cirel entoando A Marselhesa, hino da França, vestida como Marianne, figura símbolo da Revolução Francesa, até Arsene Lupin, personagem de livros de detetive, e o Fantasma da Ópera, passando por Joana D’Arc, Cyrano de Bergerac, Marie Curie, Pierre de Coubertin, Marcel Proust, Mime Marceau, Joséphine Baker e Simone de Beauvoir.

Outro momento de comoção foi uma mulher cavalgando um cavalo mecânico de metal sobre o Sena, portando a bandeira olímpica, encarnando a deusa Sequana, até subir com um cavalo branco de verdade, a ponte em frente à Torre. Mas o hasteamento com a bandeira de cabeça para baixo tirou um pouco do brilho da cena.

“Mas quem é essa cavaleira de papel alumínio com seu cavalo de aço que avança sob as milhares de telas pretas do público? Seu trem com as bandeiras olímpicas contrasta com seu traje distópico. Já não sabemos em que ano estamos. 1936? 2073? A música é épica, os cantores gritam e nos fazem oscilar entre o chauvinismo e o desejo do fim do mundo. Grande demônio, cavaleiro, revele-se!”, encantou-se o jornal Libération. Mas houve quem achasse que a cena parecia plagiada da capa do último álbum de Beyoncé, Cowboy Carter.

Na descrição do Libération, “uma mistura de gêneros e épocas, numa versão miniatura dos jardins de Versalhes, cerca de trinta breakers, jogadores de basquetebol e outros 8 praticantes de BMX dão vida a figuras da História de França: os reis Dagoberto, Henrique IV e Luís XIV, mas também La Fayette, Napoleão, General De Gaulle, camponeses medievais, revolucionários, fuzileiros do corpo de infantaria das tropas coloniais francesas e Gavroche, personagem de Os Miseráveis. A cena é pontuada pela performance do título “Viens, Hymen” de Jean-Philippe Rameau, entre a ponte dos Invalides e a ponte da Alma”. E também, observou o L’Humanité, “a cabeça decepada de Maria Antonieta”.

A aparição em vídeo, mostrada em um dos 71 telões, do ex-jogador Zidane foi bastante aplaudida nas ruas, aos gritos de “c’est Zisou”. Em compensação, súbita exibição de Macron no finalzinho foi agraciada com apupos.  

O espetáculo durou quase quatro horas, com seis quilômetros de percurso entre as pontes de Austerlitz e Jena. Foram 3000 m² de palcos, 2000 artistas e 200 dias de ensaio. 20 mil voluntários e 45 mil policiais e agentes da lei foram destacados para o desfile.

Nas horas que antecederam a cerimônia de abertura, franceses e francesas cada vez mais irados e visitantes da Cidade Luz vagavam pelas ruas ao redor do Hotel de Ville, onde a fanzone era estritamente acessada apenas com código QR. “Você sabe onde há uma tela grande?”, perguntou um americano desconsolado. Tentamos três lugares!”, registrou também o Libé.

A publicação também atribuiu ao comitê organizador francês a pretensão “desde os primeiros minutos, de tentar competir com o referencial da área: a cerimônia bem cinematográfica de abertura dos Jogos de Londres 2012, coreografada pelo diretor Danny Boyle”.

Segundo a Franceinfro, como registrou o jornal Le Monde, a qualidade da água no dia em que a prefeita Anne Hidalgo se banhou no Sena (17 de julho), estavam aquém dos limites recomendados pelas autoridades de saúde, de acordo com dados publicados no site da cidade de Paris.

No Trocadéro, calorosas saudações à Palestina. Até então entusiasmado, mas pouco demonstrativo, o público presente na esplanada do Trocadéro aplaudiu calorosamente a delegação palestina quando esta apareceu nos telões gigantes. Também o Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados, Filippo Grandi, foi homenageado com os louros olímpicos do COI.

A repúdio à presença israelense pelo público já começou. No jogo de futebol Mali vs Israel, os israelenses foram vaiados desde o hino até cada vez que tocavam na bola. A partida terminou empatada em 1-1.

A delegação brasileira foi transportada no barco Le Bel Ami, tendo como porta-bandeiras o campeão e multimedalhista olímpico Isaquias Queiroz, da canoagem de velocidade, e a capitã da equipe de rugby sevens, Raquel Kochhann, que voltou ao esporte após vencer um câncer de mama. A delegação tem 50 atletas de 13 modalidades. Além de Isaquias, havia mais dois medalhistas no barco: o cavaleiro Rodrigo Pessoa e a judoca Ketleyn Quadros.

Outra atitude que chamou a atenção foi protagonizada pela delegação da Argélia, que prestou reverência aos mortos de 17 de Outubro de 1961, atirando rosas no Sena. A homenagem se refere à manifestação organizada pela FLN em Paris em plena guerra de independência para lutar contra a imposição de um toque de recolher aplicado apenas aos argelinos, em que foram mortos pela violenta repressão policial entre 7 e 200 mortos, alguns dos quais acabam afogados no Sena. Massacre recentemente reconhecido oficialmente por Macron, décadas depois.

Também foi bem acolhida a delegação de refugiados, criada pela primeira vez nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, em 2016. São 36 representantes, que disputam 12 modalidades.  O grupo representa todos aqueles que foram forçados a ir embora dos seus países de origem. A escolha dos atletas foi realizada pelo Conselho Executivo do Comitê Olímpico Internacional (COI). A camaronesa Cindy Ngamba foi escolhida para ser a porta-bandeira do grupo, que desfilará pela primeira vez com seu próprio emblema, um coração.

Há uma mancha nessa Olimpíada, que jamais terá como ser apagada: a presença de Israel, contra o qual não foi acionada a cláusula da “trégua olímpica”, apesar do inclemente genocídio contra os palestinos em Gaza, aos olhos do mundo, e sob investigação da Corte Internacional de Justiça da ONU. Genocídio que não para um minuto, e com o açougueiro de Tel Aviv, ovacionado no Congresso dos EUA, aonde foi pedir mais bombas para matar mais crianças e mulheres. De acordo com a respeitada revista médica britânica The Lancet, que já fez anteriormente estimativas para a matança no Afeganistão e Iraque, a escala do genocídio se aproxima de 200 mil, entre mortes diretas e indiretas.

O banimento de Israel foi expressamente pedido pelo Comitê Olímpico Palestino e pelo do Irã, mas foi ignorado pelo Comitê Olímpico Internacional, segundo aquela regra não escrita de que todos são iguais, mas alguns são mais iguais. Então, o genocídio não foi considerado suficiente para o banimento do regime de apartheid – aliás, em outras épocas em que o fascismo não estava com tanta folga, a África do Sul ficou proibida de participar de Olimpíadas entre 1964 e 1992.

Também Nkosi Zwelivelile Mandela, neto de Nelson Mandela, pediu que “Israel do apartheid” seja banido dos Jogos Olímpicos de Paris.

“Nós [manifestantes pró-palestinos] estamos aqui em Paris hoje para fazer um apelo a toda a comunidade global, ao movimento de solidariedade internacional e a todos os movimentos de base para pedir a proibição de Israel do Apartheid dos Jogos Olímpicos de Paris”, disse ele em ato no centro da capital francesa nas vésperas da abertura.

O neto de Mandela denunciou que mais de 400 atletas palestinos que poderiam participar das Olimpíadas foram mortos, juntamente com sua equipe de treinamento e treinadores, na invasão de Gaza pelas tropas coloniais israelenses. Ele também apontou a destruição de instalações esportivas na Palestina.

“Portanto, pedimos ao COI que proíba os usurpadores de participar, particularmente à luz do fato de que mais de 30 de seus atletas servem nas IDF e têm participado do genocídio, limpeza étnica, crimes de guerra e crimes contra a humanidade”, sublinhou.

O que não impediu o presidente do COI, o alemão Thomas Bach de asseverar que, “em um mundo dilacerado por guerras e conflitos, é graças à solidariedade que todos podemos nos unir esta noite. Bem vindos atletas olímpicos”.

Na parte da manhã, autoridades francesas registraram o que chamaram de ações “coordenadas” destinadas a paralisar a rede de trens de alta velocidade, afetando aproximadamente 800 mil passageiros. A empresa ferroviária SNCF descreveu “vários atos mal-intencionados e simultâneos afetaram as linhas de alta velocidade do Atlântico, Norte e Leste”, com “incêndios criminosos provocados para danificar instalações”. Mais tarde, a situação foi considerada sob controle, com a realização de inspeções e reparos, embora podendo persistir alguns percalços “pelo menos todo o fim de semana”.

Fonte: Papiro