Ingleses varrem nas urnas o Partido Conservador em repúdio a 14 anos de arrocho
O Partido Conservador foi derrotado nas eleições desta quinta-feira (4) no Reino Unido, com as pesquisas de boca de urna indicando que despencou de 372 para 131 – uma perda de 205 deputados – enquanto os trabalhistas, capitaneados por Sir Keir Starmer, nadaram de braçada, e devem chegar a 410, superando a maioria absoluta, que é de 326.
A eleição poderia ter acontecido até janeiro de 2025, mas o primeiro-ministro Rishi Sunak resolveu antecipar o pleito, e o povo britânico não desperdiçou a oportunidade de se livrar de, como registrou o jornal Morning Star, “14 anos catastróficos, em que os conservadores privaram o setor público de fundos, criando o colapso que agora vemos no SNS, na educação e em todo o poder local; iniciaram ou alimentaram guerras devastadoras, da Líbia, passando pela Síria, Ucrânia, até o Iêmen e Gaza; e executaram uma transferência maciça de riqueza das pessoas comuns para os mais ricos”.
De 2010 em diante, acrescenta a publicação, “este não foi apenas um governo moldando aquilo que o secretário-geral do TUC, Paul Nowak, chama de um país de ‘miséria pública e riqueza privada’, mas um que sistematicamente fez de bode expiatório os vulneráveis por meio da política de crueldade e ódio”.
A economia britânica, que estivera em recessão em 2023, com quedas de 0,3% no quarto semestre, depois de queda de 0,1% no terceiro trimestre, só cresceu 0,6% no primeiro trimestre de 2024.
Sob o impacto das sanções contra a Rússia, no final de 2022 a inflação atingiu um pico de 11%, o maior nível em quatro décadas. Para a maioria, especialmente os servidores públicos, afetados pelo arrocho, o salário não conseguiu acompanhar a escalada dos preços.
De acordo com a Associated Press, o Instituto de Estudos Fiscais disse em março que o atual Parlamento supervisionou o pior crescimento nos padrões de vida desde pelo menos 1961. Acrescentou que, de 2019 a 2023, o número de adultos que relataram não conseguir aquecer adequadamente suas casas mais do que dobrou.
Ainda segundo a AP, para aqueles com benefícios ou baixa renda, falar sobre mudança ou crescimento parece distante quando é uma luta diária para comprar alimentos básicos e aquecimento. Os mais pobres do Reino Unido – acrescentou – foram desproporcionalmente atingidos pela crise do custo de vida porque gastam uma parcela muito maior de sua renda em itens essenciais.
Mais pessoas estão caindo na pobreza e mais estão recorrendo a bancos de alimentos, de acordo com o Trussell Trust, que administra mais da metade de todos os bancos de alimentos do Reino Unido. A instituição disse que forneceu 3 milhões de cestas básicas emergenciais para pessoas necessitadas no ano passado – um número recorde – incluindo para mais de 300.000 pessoas que usaram um banco de alimentos pela primeira vez.
Sob tal deterioração das condições de vida, nos últimos dois anos tem havido uma onda de greve como não se via há décadas no Reino Unido.
As eleições poderiam ter acontecido até janeiro do próximo ano, mas o primeiro-ministro Rishi Sunak resolveu antecipar, possivelmente inspirado pelo mesmo tirocínio político que levou o presidente francês Emmanuel Macron a uma decisão análoga.
O último conservador a ser efetivamente eleito nas urnas havia sido David Cameron, com Theresa May, Boris Johnson, Lis Truss e Rishi Sunak o substituindo via um mecanismo interno do partido.
Cada um deles, um desastre. Johnson, cuja gestão da pandemia causou um número enorme de mortos, em paralelo com as festinhas em Downing Street 10 durante o lockdown, o ‘Partygate’, que acabaria levando à sua queda; Truss, que quase faliu o Reino Unido em uma semana com sua política econômica, e acabou trocada às pressas pelo banqueiro Sunak.
Coube a Johnson, na guerra dos EUA/Otan contra a Rússia na Ucrânia, o papel de mensageiro de Washington, indo em pessoa a Kiev comunicar a Zelensky a ordem de encerrar as negociações de paz de Istambul e apostar na guerra.
Também foi sob os conservadores que o Brexit, que poderia ser uma oportunidade para o Reino Unido, como defendiam setores da esquerda, se reencontrar com uma política de soberania, reindustrialização e reconstrução do papel do Estado, acabou se tornando um fiasco e gerou uma crise para a qual os discípulos de Madame Tchatcher não tinham resposta.
A saída da União Europeia só serviu mesmo para ampliar o belicismo e submissão a Washington, como na constituição da Aukus, aliança militar com EUA e Austrália para militarizar o Pacífico e hostilizar a China.
Sob os governos conservadores, também a xenofobia e a perseguição aos imigrantes alcançaram novas alturas, chegando a ser assinado um acordo com Ruanda para deportar para lá os “ilegais”.
Do ponto de vista dos direitos e das condições de vida, o programa apresentado pelos trabalhistas, embora muito insuficiente, apresenta melhorias como a renacionalização de certas partes das ferrovias que foram privatizadas pelos conservadores, recuperação de parte dos direitos cortados, aumento do salário mínimo e recomposição do financiamento para o SUS britânico, o NHS.
No plano externo, sob Starmer, não se espera nenhuma mudança essencial na atual política, com o novo governo aferrado à guerra por procuração da Otan contra a Rússia na Ucrânia e à conivência com o genocídio que Israel perpetra em Gaza.
Aliás, Starmer, que é uma cria do blairismo, usou como pretexto para derrubar da direção dos trabalhistas Jeremy Corbyn a falsa acusação de que este permitia o “antissemitismo” nas fileiras do partido.
Corbyn, historicamente apoiador da libertação dos palestinos e líder das manifestações contra a guerra no Iraque, assim como seus seguidores, nada tinha de “antissemita” e é, isso sim, contra o apartheid sionista.
Uma manipulação asquerosa, que possibilitou que, ao final, fosse negada a Corbyn, que é deputado há quatro décadas e chegou a ser líder do partido, até mesmo legenda nesta eleição, sendo forçado a concorrer como independente.
Starmer também tem outra mancha no currículo que não tem como apagar. Foi ele, no governo de Gordon Brown, que, como procurador-geral, agiu para a perseguição política ao fundador do WikiLeaks, Julian Assange, em conluio com o governo sueco e com Washington, naquela operação de assassinato de caráter, a falsa acusação de estupro. Que acabou forçando o jornalista a pedir asilo na embaixada do Equador em Londres, após a Suécia se recusar a conceder garantia de que ele não seria extraditado para os EUA, a real razão para a farsa.
No programa de governo, os trabalhistas se declararam a favor do cessar-fogo em Gaza e resta ver se o novo governo vai parar de tentar dificultar as manifestações contra o genocídio, como andou fazendo Sunik.
De acordo com as projeções, os eurocépticos do partido da Reforma, uma espécie de racha dos conservadores pela direita, sob Nigel Farange, um dos principais arautos do Brexit, chegaria a 13 cadeiras. Os liberal-democratas, 61; os nacionalistas escoceses (SNP), 10; os gaélicos, 4; os verdes, 2; e outros, 19. Os números finais deverão estar definidos na madrugada de quinta para sexta-feira.
Fonte: Papiro