Arce no balcão do Palácio Presidencial com demais autoridades após a vitória sobre os golpistas | Foto: ABI

A Bolívia convocou o seu embaixador na Argentina para consultas, horas após rejeitar declarações do governo do fascista Milei, na segunda-feira (1), que chamava de “falsa denúncia” a tentativa de golpe contra o presidente Luis Arce da semana passada.

As declarações do governo argentino, aliás na contramão do apoio do mundo inteiro à resistência e à derrota da tentativa de golpe, foram rechaçadas pela Bolívia em comunicado, e consideradas “inamistosas e temerárias”.

Dizendo se basear em “informes da inteligência”, o documento do governo argentino disse que o relato divulgado “foi pouco crível e os argumentos não se enquadravam no contexto sociopolítico do país latino-americano”, acrescentando que a democracia boliviana estava em perigo “não devido à tentativa de golpe, mas porque historicamente os governos socialistas levam a ditaduras”.

Em sua resposta, o Ministério das Relações Exteriores da Bolívia afirmou que “afirmações desinformadas e tendenciosas sobre a possível existência de presos políticos, ou a possibilidade da inexistência de um golpe de Estado militar fracassado, constituem um negacionismo excessivo e inaceitável, em vista do qual convidamos você a se informar e agir dentro do enquadramento dos princípios de respeito à soberania e não intervenção de outros Estados, de acordo com a Carta das Nações Unidas e o Direito Internacional”.

“A coexistência pacífica e a fraternidade entre os nossos povos nunca devem ser perturbadas por interesses mesquinhos e ideologias fascistas”, continua o comunicado de La Paz.

“A amizade boliviano-argentina é histórica, por isso agradecemos as milhares de vozes da Argentina que condenaram o fracassado golpe de estado militar na Bolívia, bem como expressaram sua solidariedade e apoio ao governo boliviano”.

EVO FAZ ECO AO GENERAL GOLPISTA

Vem causando certa perplexidade a convergência entre Milei e o ex-presidente Evo Morales na tese de que a tentativa de golpe seria um “autogolpe”, ecoando a alegação do encarcerado general Zúñiga, depois que a mobilização popular nas ruas e a firmeza do presidente Luis Arce levaram ao colapso da intentona.

De acordo com os promotores, o general pode ser condenado a até 20 anos de prisão. No sábado, ele foi transferido para El Abra, uma prisão de segurança máxima no departamento de Cochabamba.

Morales, nas redes sociais, buscou se distanciar do endosso de Milei, dizendo rejeitar a ingerência e que “os assuntos dos bolivianos serão resolvidos pelos bolivianos. Respeitem a Bolívia!”.

“ASPIRAÇÕES PESSOAIS”

Em entrevista ao El País no domingo, o presidente Arce reagiu às alegações de Evo Morales de “autogolpe”, acusando-o de fazê-las por causa de “suas aspirações políticas pessoais.”

“Morales quer ser candidato à presidência em 2025 a qualquer custo e já disse: ‘Vou ser candidato por bem ou por mal’. Ele nos pegou com conflitos aqui, com ameaças de bloqueios, está incitando os setores a saírem e entrarem em conflito no país para que depois exigir sua candidatura”, disse ainda o presidente boliviano.

Arce disse que não voltou a falar com Morales e que ligara para ele no dia do golpe para “avisá-lo da situação.” Acrescentou não se surpreender com as alegações dele, porque “todos nós que o conhecemos sabemos o que ele quer. E ele vai usar tudo, inclusive questionar o golpe fracassado, para suas aspirações políticas pessoais.”

No próximo ano realizam-se as eleições na Bolívia e desde setembro do ano passado Evo Morales está em campanha por sua candidatura. Registre-se que, em 2019, foi a insistência de Evo Morales em continuar na Presidência, ser candidato novamente, apesar de decisão em contrário de referendo, que serviu de mote para a preparação do golpe que levou à sua deposição e exílio.

EVO SE DIZ “CONVENCIDO”

“Lucho nos enganou, mentiu para nós, mentiu para os bolivianos e para o mundo inteiro. Será um golpe ou um autogolpe, está em debate, (mas) estou mais convencido de que é um autogolpe para elevar a sua imagem ou deixar a Presidência para (uma) junta militar”, disse o antigo governante em uma assembleia da Federação das Áreas Tradicionais de Cultivo de Coca, publicou o jornal La Razón.

A intenção era, disse, “encobrir a má gestão” do Governo e a “falta” de dólares e de combustível. Um dia antes ele havia declarado ser o alvo do golpe de Estado. Evo ironizou que “começa o golpe, ministros felizes caminhando na Plaza Murillo, um golpe de Estado com zero feridos, zero tiros, zero mortes”.

Em suma, deu aval ao general golpista que, após derrotado e preso, alegou ter agido “a pedido de Arce” para “aumentar sua popularidade”.

PEDIDO DE INGRESSO NOS BRICS

Cerca de um mês antes da tentativa de golpe do general Zúñiga, o presidente Arce visitou a Rússia, onde se reuniu com o presidente Putin, e apresentou um pedido formal de adesão aos Brics. Foi alcançado com a China um acordo de swap para a utilização do yuan como moeda de troca.

Em dezembro de 2023, a Bolívia se tornou o quinto membro efetivo do Mercosul, depois de oito anos de espera.

Também em dezembro passado, a estatal boliviana YLB e o consórcio russo Rosatom assinaram um acordo para iniciar a exploração da principal riqueza mineral do país, o lítio, visando sua industrialização, essencial para que mais veículos a motor de explosão serem substituídos por elétricos. A Bolívia tem 24% das reservas provadas de lítio.

Na época do golpe de 2019, após as redes sociais denunciaram que o açambarcamento do lítio estava por trás da deposição do governo do MAS, o magnata Elon Musk, dono da Tesla, postou que “dava golpe em quem quisesse”.

O EX-VICE GARCÍA LINERA

O ex-vice-presidente Álvaro García Linera disse em entrevista ao jornal mexicano La Jornada considerar tanto Evo quanto Arce responsáveis pela deterioração do bloco nacional popular e pela paralisia política que agrava as dificuldades econômicas do país.

Para ele, “no bloco nacional popular há uma perda do horizonte estratégico, dos verdadeiros adversários a enfrentar e um envolvimento em lutas personalizadas e muito mesquinhas”. “Não há debate sobre como sair da crise econômica, a única coisa é quem deve ser o candidato presidencial para 2025. Isto deve ser colocado num contexto histórico: o fim do momento hegemônico do processo de mudanças progressistas, e o início de um processo administrativo e fragmentado.”

Ele acrescentou que, “ao contrário de Evo, não creio que o mal a Lucho beneficie sua candidatura, é uma leitura muito instrumental e eleitoral e não política. O que corre mal para o Luís corre mal para todos nós, para o país e para o evismo”, destacou.

RESTAURAR A FORÇA ECONÔMICA DO ESTADO

Para Linera, as reformas de segunda geração envolvem necessariamente a restauração da força econômica do Estado, que foi perdida nos últimos cinco anos. “No nosso tempo, 65 por cento das exportações eram feitas pelo Estado, hoje são 25 por cento e o sector privado 75. Temos assim um Estado que não consegue controlar a taxa de câmbio, que perdeu a sua força redistributiva e a capacidade de investimento público”.

Ele propõe “um período de transição para restaurar o poder econômico do Estado com as seguintes medidas imediatas 1) Controle do comércio exterior, onde todos os exportadores por um período temporário têm a obrigação de liquidar seus dólares no Banco Central para resolver a agitação popular e dos setores médios pela ausência de dólares; 2) Uma reforma fiscal progressiva que tribute as maiores fortunas, aqueles que têm mais de um milhão de dólares, sem tocar nos setores médios e populares, para reduzir o déficit, que é de 11 por cento”.

INDUSTRIALIZAÇÃO DO LÍTIO

Segundo o ex-vice-presidente, é preciso “redesenhar a questão do lítio, perdemos quase cinco anos, primeiro com o golpe de 2019 e depois com as políticas erráticas de Luis Arce. A minha visão não é extrativista, mas de cadeia de valor, podemos usar o fato de sermos a maior reserva de lítio do mundo como uma contribuição compartilhada para uma associação de empresas internacionais tendo o Estado como parceiro.”

Por sua vez, o ex-ministro do Interior e economista, Hugo Moldiz, assinalou que a economia sofre com a escassez de divisas em consequência da queda nas exportações de gás natural e da escassez de combustíveis, sobretudo de diesel, que há poucos dias provocou uma greve de caminhoneiros.

Moldiz chamou ainda a tomar medidas para garantir a entrada e saída de recursos da agroindústria e do setor cooperativo mineiro, que movimentam suas moedas através do Banco Central. Ele convocou também a acelerar o acordo de swap para uso do yuan no comércio exterior, o que, ao contrário do que diz a oposição, garantiu ter a concordância dos empresários.

Fonte: Papiro