Ali Kamel, autor de ‘Não Somos Racistas’, se rende às cotas raciais
Vai passando o tempo, e as cotas raciais começam a ser naturalizadas no Brasil. Apesar de ainda haver opiniões contrárias, não é nada que lembre o auge do debate, travado sob o primeiro e o segundo governo Lula (2003-2010).
O DEM, partido que encarnava a direita mais raivosa no País, foi ao STF (Supremo Tribunal Federal) para tentar barrar a reserva de vagas em universidades públicas. Um de seus senadores mais estridentes, Demóstenes Torres (GO) – que teve o mandato cassado dois anos depois –, ousou até corresponsabilizar os negros pela escravidão.
“Todos nós sabemos que, lamentavelmente, a África subsaariana forneceu escravos para o mundo antigo, para o mundo islâmico, para a Europa e para a América”, afirmou o parlamentar, em 2010, numa audiência pública no STF. “Não deveriam ter chegado aqui na condição de escravos – mas chegaram. Até o princípio do século 20, o escravo era o principal item de exportação da pauta econômica africana.”
Há polêmicas que produzem não apenas ideias falsas – mas também pseudointelectuais. No calor da discussão, a batalha das cotas rendeu holofotes exagerados a um livro de título e subtítulo pretensiosos: Não Somos Racistas – Uma Reação aos que Querem nos Transformar numa Nação Bicolor.
Como seu autor, Ali Kamel, era diretor de jornalismo do Grupo Globo – cargo de extremíssima confiança –, não dava para dissociar a opinião da pessoa física e da pessoa jurídica. A obra, publicada em 2006, foi incensada pelos segmentos anticotas e se tornou um best-seller.
Kamel combatia a tese do racismo estrutural. Segundo ele, ante as características próprias da miscigenação à brasileira, não há barreiras ao ingresso de negros no ensino superior. As cotas seriam, assim, um risco, pois supostamente dividiriam os brasileiros entre “brancos” e “não brancos”, criando uma “separação de cores que nunca existiu” e, pior, “promovendo ódio racial”.
Obra militante, Não Somos Racistas foi divulgado por sua editora, a Nova Fronteira, como “um livro nascido do espanto”. Mas o lobby e o alarmismo se revelaram inúteis. A Lei de Cotas, sancionada em 2012, destinou metade das vagas em universidades federais para estudantes de escola pública, obedecendo a proporção local de estudantes PPI (pretos, pardos e indígenas). Pouco a pouco, as universidades estaduais aderiram à causa.
Conforme levantamento do Gemaa (Grupo de Estudos Multidisciplinares de Ação Afirmativa), os cotistas representam a maioria dos estudantes nas 67 universidades federais (desde 2016), bem como nas 39 estaduais (desde 2023). Atualmente, há mais de 200 mil jovens brasileiros que estão no ensino superior graças à Lei de Cotas.
Não houve prejuízo acadêmico, nem tampouco escalada de ódio racial. Ali Kamel estava errado, a exemplo de Demóstenes Torres e do conjunto da direita brasileira. Em abril, pesquisa Datafolha indicou que 83% dos brasileiros apoiam as cotas em universidades federais, embora haja uma ligeira preferência por reserva de vagas para estudantes egressos de escolas públicas.
Pesa a favor de Ali Kamel, porém, um princípio de retratação. O dado consta no extenso e laudatório perfil do jornalista publicado na edição de abril da revista Piauí. Escrito pela repórter Ana Clara Costa, o texto mostra que, em 2009, João Roberto Marinho, um dos mandachuvas da Globo, recomendou que Kamel deixasse de publicar artigos opinativos. A razão era óbvia: com suas posições extremadas, o diretor de jornalismo “estava nublando a linha divisória entre suas opiniões e as opiniões do Grupo Globo”.
Um motivo adicional é o mea-culpa de Kamel sobre as cotas – uma mea-culpa tardio, parcial e discreto, mas digno de nota. “Quando a Ediouro, que comprou a Nova Fronteira, propôs uma reedição de Não Somos Racistas, a conversa não avançou”, registra a Piauí. “A amigos, Kamel não diz que mudou de ideia, mas reconhece que sua visão perdeu o debate público, e os resultados obtidos pelas cotas raciais são irrefutáveis.”
Em novembro passado, no mês da Consciência Negra, Lula sancionou a atualização da Lei das Cotas. Ao avaliar o legado da primeira década da legislação, o presidente classificou a reserva de vagas como uma “importante ferramenta de reconstrução de um país historicamente governado por uma minoria privilegiada”.
“Juntamente com o Reuni, o Prouni e o Refis, a Lei de Cotas provocou uma revolução pacífica na educação brasileira ao abrir as portas das universidades federais para jovens de baixa renda, negros, pardos, indígenas e pessoas com deficiência”, disse Lula. Passados 18 anos do lançamento de Não Somos Racistas, até o autor de um agressivo libelo contra as cotas se rendeu aos fatos.