Ramaphosa assume presidência da África do Sul à frente de governo de “União Nacional”
Tomou posse em Pretoria nesta quarta-feira (19) o presidente sul-africano Cyril Ramaphosa, do Congresso Nacional Africano (CNA), cujo partido venceu as eleições com 40%, e que foi reeleito pelo parlamento para um segundo mandato de cinco anos graças à constituição de um governo de união nacional (GUN), com a inclusão da oposicionista Aliança Democrática e mais quatro partidos, garantindo os 50% dos votos mais 1.
Duas dissidências do CNA, os Lutadores pela Liberdade Econômica (EFF), e o recém criado “UMkhonto weSizwe (MK), (Lança da Nação), do ex-presidente Jacob Zuma, se recusaram a participar do governo de união nacional.
“Eu, Matamela Cyril Ramaphosa, juro que serei fiel à República da África do Sul e que obedecerei, observarei, defenderei e preservarei a Constituição e todas as leis da República”, declarou solenemente o Chefe de Estado de 71 anos ao chefe do Poder Judiciário sul-africano, Raymond Zondo.
A posse terminou com 21 tiros de canhão e o hino nacional, enquanto helicópteros da Força Aérea desfraldavam bandeiras sul-africanas no céu. Entre os convidados, os ex-presidentes Thabo Mbeki e Kgalema Motlanthe; as ex-primeiras-damas, Graça Machel e Elita De Klerk; o vice-presidente cubano, Salvador Mesa; o presidente do Zimbábue, Emmerson Mnangagwa; e o presidente da Namíbia, Nangolo Mbumba.
Ex-presidente do Sindicato Nacional dos Mineiros durante a luta contra o apartheid e atual secretário-geral da ANC, Ramaphosa foi eleito com 283 votos na primeira sessão do Parlamento, com o apoio da oposicionista Aliança Democrática (DA), de centro-direita e liberal, e do Partido da Liberdade Inkatha Zulu (IFP). O GUN inclui, ainda, outros dois pequenos partidos, GOOD e Aliança Patriótica (AP). O EFF apresentou a candidatura de seu líder, Julius Malema, que só recebeu 44 votos.
Nos últimos anos, o CNA viveu uma intensa luta interna, que resultou no afastamento do então presidente sul-africano Zuma e sua substituição por Ramaphosa, disputa que decantou nesta eleição, com Zuma tendo fundado seu próprio partido, a que deu o nome de Lança da Nação (MK), o mesmo do braço armado do CNA durante a luta contra o apartheid.
Zuma, de 82 anos, foi forçado a renunciar à presidência em 2018 em meio a uma série de escândalos de corrupção, foi desqualificado para concorrer às eleições deste ano e, em 2021, chegou a cumprir uma pena de prisão por desacato a um tribunal – esse o nível da conflagração dentro do CNA.
Foi assim que de 57,5% dos votos na eleição de 2019 o CNA caiu para 40% dos votos em 2024, enquanto o MK alcançava 14,6%, tendo inclusive na província de maioria zulu KwaZulu Natal, a segunda mais populosa – Zuma era a maior liderança zulu no CNA – obtida 45% dos votos e o governo local.
O que implicou na perda, pelo CNA, da maioria simples pela primeira vez desde a vitória sobre o apartheid, apesar de se manter como o maior partido sul-africano na eleição de 29 de maio, com 159 assentos de 400 na Assembleia Nacional.
As votações dos demais partidos não tiveram mudanças drásticas entre as duas eleições. A Aliança Democrática obteve 20,7% em 2019 e 21,7% agora. O EEF teve 10,7% em 2019 e 9,5% em 2024. O Inkhata obteve 3,8% nos dois pleitos. A participação nas eleições, que havia sido de 66% em 2019, caiu para 59% este ano.
Para responder a esse novo quadro, o CNA recorreu à mesma estratégia usada por Nelson Mandela em seu primeiro governo pós-apartheid, quando governou em coalizão com a Aliança Democrática, tendo como vices o ex-chefe do regime do apartheid, Frederik Willem De Klerk, e o líder do Inkhata e colaboracionista, Mangosuthu Buthelezi.
A África do Sul é o mais desenvolvido, embora extremamente desigual, país africano. O mais industrializado e o segundo no continente em PIB por paridade de poder de compra, só atrás da Nigéria. O que, associado à estatura internacional conquistada pelos sul-africanos ao derrotarem o apartheid e o racismo, fez com que o país fosse o candidato natural do continente africano na constituição do BRICS, junto com Brasil, Rússia, Índia e China, e portanto peça essencial na luta pela nova ordem mundial multipolar e pela desdolarização. E que, atualmente, esteja liderando a pressão internacional para que Israel seja julgado pela Corte Internacional de Justiça de Haia por perpetrar genocídio em Gaza.
O que explica porque veículos de mídia estreitamente associados ao neoliberalismo e ao rentismo tivessem, curiosamente, interpretado o resultado da eleição como “os eleitores puniram o CNA pelos altos níveis de pobreza, desigualdade e desemprego, criminalidade desenfreada, cortes contínuos de energia e corrupção nas fileiras do partido”.
Trinta anos de revogação do apartheid ainda não foram suficientes para curar todas as feridas deixadas pelo desumano sistema, e avançar nesse sentido é inadiável. O desmonte do apartheid teve de ser realizado sob o Consenso de Washington e o mundo unipolar sob Wall Street e o Pentágono. Apesar disso, a economia cresceu cerca de 3,5% ao ano após o fim do apartheid.
No mais desenvolvido país africano, segundo as próprias estatísticas sul-africanas quase 60% da população vive na pobreza, embora haja ocorrido um enorme avanço na porcentagem da população com acesso à água, luz e educação. O desemprego é oficialmente de 32% – e ainda mais alto entre a juventude. A inflação média em 2023 foi de 6,0%, o que é ainda pior no estrato dos 20% mais pobres, de 9,3%. Também há apagões constantes no fornecimento de energia.
47% da população, segundo o Banco Mundial, depende dos programas sociais para subsistir. O índice de Gini, que avalia a concentração de renda, é 0,63 – o que a torna, segundo o Relatório de Desenvolvimento Humano 2021/2022, publicado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) em maio deste ano, a nação de maior desigualdade social do mundo.
Sob o impacto acumulado da crise financeira mundial de 2008 e da epidemia de covid-19, o PIB per capita da África do Sul caiu para US$ 6.190 em 2023, praticamente o mesmo nível de 2006. Em 2022, era de US$ 6.776.
“A formação de um governo de unidade nacional é momento de grande significado. É o início de uma nova era”, reiterou o presidente sul-africano na posse de seu segundo mandato.
“É hora de reunir todas as nossas capacidades e direcionar todas as nossas energias para atender ao chamado do povo da África do Sul, até que tenhamos criado empregos para quem precisa; até que haja comida suficiente em todas as mesas”.
Ele lembrou que há 30 anos os líderes sul-africanos se reuniam “em um governo de unidade nacional para forjar um futuro comum e construir uma nação unida. E que as partes no GNU de hoje concordaram em trabalhar juntas para enfrentar os desafios mais urgentes diante de nossa nação”.
“As partes adotaram uma Declaração de Intenções, na qual se comprometeram a buscar um crescimento econômico rápido, inclusivo e sustentável; criar uma sociedade mais justa, combatendo a pobreza; salvaguardar os direitos dos trabalhadores; para estabilizar o governo e para construir a capacidade do Estado”, disse.
Ramaphosa disse que as partes assumiram o compromisso de investir no povo da África do Sul por meio de educação e saúde de qualidade; enfrentar o crime e a corrupção; reforçar a coesão social e construir uma nação unida; e, prosseguir uma política externa baseada nos direitos humanos, na solidariedade e na paz.
“Trinta anos se passaram desde que viramos as costas à tirania racial e abraçamos uma sociedade aberta e democrática. Fizemos grandes avanços na construção de uma nova sociedade fundada em instituições democráticas fortes e liberdades universais.”
Ramaphosa sublinhou que o povo da África do Sul falou e a sua vontade será feita sem qualquer dúvida ou questionamento. “Os eleitores da África do Sul não deram a nenhum partido o mandato completo para governar nosso país sozinho. Eles nos orientaram a trabalhar juntos para resolver sua situação e realizar suas aspirações”, disse ele.
“Eles expressaram seu apreço pelo progresso em muitas áreas de suas vidas nos últimos 30 anos de democracia. Eles também foram inequívocos em expressar sua decepção e desaprovação de nosso desempenho em algumas das áreas em que falhamos.”
Ele acrescentou que o povo da África do Sul exigiu o fim do roubo de fundos públicos e da captura do Estado. “Acima de tudo, o povo da África do Sul enfatizou que está impaciente com brigas políticas e o jogo de culpas interminável entre políticos e partidos políticos. Eles querem que coloquemos suas necessidades e aspirações em primeiro lugar e querem que trabalhemos juntos pelo bem do nosso país”, disse.
“Hoje estou diante de você como seu humilde servo para dizer que o ouvimos. Como presidente da República, trabalharei com todos para chegar e trabalhar com todos os partidos e setores políticos que estejam dispostos a contribuir para encontrar soluções para os desafios que nosso país enfrenta na transição para uma nova década de liberdade.”
Apesar dos progressos e marcos alcançados, Ramaphosa disse que a sociedade sul-africana continua profundamente desigual e altamente polarizada. “Há clivagens tóxicas e uma fragmentação social incipiente que pode facilmente se transformar em instabilidade. As linhas traçadas pela nossa história, entre o preto e o branco, entre o homem e a mulher, entre os subúrbios e os municípios, entre o urbano e o rural, entre os ricos e os pobres, permanecem gravadas na nossa paisagem”, disse.
“Em alguns lugares, essas linhas podem parecer ter desaparecido, mas não desapareceram. Somos cidadãos de um país e, no entanto, ocupamos mundos diferentes, separados por muros altos e grandes distâncias.” Ele disse que os sul-africanos estão divididos entre aqueles que têm emprego e aqueles que não trabalham; entre os que têm meios para construir e desfrutar de uma vida confortável e os que não têm.
“Esta é uma nova maré que anuncia progresso, transformação e mudança profunda e fundamental. Olhamos para esta maré crescente com otimismo e esperança. Devemos rejeitar qualquer tentativa de nos dividir ou distrair, de semear dúvidas ou cinismo, ou de nos virar uns contra os outros”, disse.
“Aqueles que procuram ficar no nosso caminho, aqueles que procuram inflamar as tensões, não terão sucesso, porque os sul-africanos são resolutos. Aqueles que procuram minar nossas instituições falharão, porque a democracia vive no coração de nosso povo e nunca será desalojada”.
Fonte: Papiro