Meninas de até 14 anos são principais vítimas de epidemia de violência sexual
O Brasil segue sendo um país extremamente violento para crianças e adolescentes, em especial do sexo feminino. Para piorar, grande parte das agressões ocorre dentro de casa. Essa constatação é comprovada por números bastante impactantes: mais de 221 mil mulheres e meninas sofreram alguma forma de violência somente em 2022; quase metade das de natureza sexual foram contra garotas de 10 a 14 anos.
Estes são alguns dos dados revelados pelo Atlas da Violência 2024, feito pelo Ipea e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública e lançado nesta terça-feira (18). As bases de dados utilizadas são as do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) e do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde.
No contexto da violência doméstica, que soma mais de 144,2 mil casos do total, a de natureza física corresponde à maior fatia (36,7%), seguida da múltipla violência (31%), da negligência (12%), psicológica (10,7%) e sexual (9%).
Segundo o relatório, nesse universo doméstico e intrafamiliar, as meninas de 0 a 9 anos representam 15,2% das vítimas das várias formas de violência. Crianças e adolescentes com idade até 14 anos são 24,5%. Praticamente metade (49,9%) são mulheres em idade reprodutiva, entre 15 e 39 anos. As idosas, com 60 anos ou mais, correspondem 6,4% do total. Os autores são majoritariamente homens: 86,6%.
O Atlas salienta que “a análise das formas de violência por faixa etária revela as distintas violações que atingem meninas e mulheres ao longo da vida”.
De maneira geral, avaliando os gráficos sobre essas formas de violência, é perceptível o aumento quase que contínuo de cada tipo e em todas as faixas etárias desde 2012 até 2022, último ano analisado, com exceção do período da pandemia, onde pode ter havido subnotificação, segundo o Atlas.
O aumento pode também estar vinculado à expansão do Sinan, alimentado por profissionais que atendem as vítimas no sistema de saúde, mas não só. “Para que essa violência seja identificada pelo profissional da saúde, muito provavelmente ela está muito visível e já atingiu uma situação mais grave e extrema. Trata-se, portanto, de um número alarmante que de fato cresceu bastante, mas que ainda assim pode estar subnotificado”, explica, ao Portal Vermelho, Juliana Martins, pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Crianças violentadas
Segundo o Atlas, em 2022, entre as vítimas de zero a nove anos, a violência mais frequente é a negligência, com 37,9% dos casos, seguido pela sexual, com 30,4%. Na faixa etária de 10 a 14 anos, a violência sexual se torna prevalente – tal violação foi apontada em 49,6% dos registros no Sinan.
A partir dos 15 até os 69 anos, a violência física passa a ser a mais comum: na faixa etária de 15 a 19 anos está presente em 35,1% dos casos de violência; chega a 49% entre mulheres de 20 a 24 anos e se mantém acima dos 40% até os 59 anos.
Quantos aos locais das ocorrências contra as crianças e adolescentes, o Atlas aponta que a residência aparece como o principal nas faixas dos 0 aos 4 anos (67,5%) e dos 5 aos 14 (65,6%). No caso dos adolescentes, o percentual é de 47,5%.
“Quando a gente fala da violência não letal, a gente vê uma situação de barbárie, e compreende que o perigo mora dentro de casa”, salienta Daniel Cerqueira, do Ipea, e coordenador do Atlas. “Ou seja, o local sagrado onde aquela criança deveria ser protegida é o onde ela é acometida por inúmeros crimes, inclusive sexuais”, completa.
Num momento marcado pelo debate sobre o Projeto de Lei do Estuprador (1904/2024) — que criminaliza mulheres e meninas que fizerem aborto após 22 semanas em qualquer um dos casos previstos na legislação brasileira, inclusive o estupro —, vale chamar atenção para os dados relativos à violência sexual.
O índice é altíssimo na faixa até os 14 anos: 30% entre zero e nove anos e quase 50% entre 10 e 14 anos — público que seria punido com medidas socioeducativas no caso de aprovação da proposta defendida pela bancada evangélica e por bolsonaristas.
A violência sexual, conforme definição do Ministério da Saúde adotada nos sistemas analisados pelo estudo, engloba diversos tipos de situação, entre as quais estupro, abuso incestuoso, assédio sexual, sexo forçado no casamento, práticas eróticas não consentidas, pornografia infantil, pedofilia, manuseio, penetração oral, anal ou genital etc.
“Esses números, que encontramos na saúde, são confirmados pelos registrados no Anuário Brasileiro de Segurança Pública, que trabalha com os registros administrativos feitos pelas secretarias estaduais de Segurança Pública. Ou seja, esses dados mostram, de fato, o alto índice de violência sexual sofrida por meninas. E essas violências, que ocorrem sobretudo no contexto doméstico e familiar, ainda são naturalizadas”, pondera a pesquisadora.
Cultura machista e da impunidade
Na raiz desse problema estão as relações de poder socialmente estabelecidas há séculos. “Isso está muito ligado ao machismo estrutural e ao sistema patriarcal que coloca os homens num lugar de poder desigual em relação às mulheres e, consequentemente, às crianças, ambas vistas como mais frágeis e menos relevantes no contexto social”, analisa Juliana.
O quadro das crianças abusadas revela um contexto ainda mais cruel, considerando que os violadores são, em sua maioria, familiares do sexo masculino, de seu convívio e que têm sua confiança e afeto. “Por isso, é muito difícil para essas crianças reconhecerem esses atos como violência e falarem a respeito. É comum elas sentirem medo, culpa e vergonha e serem, não raro, ameaçadas pelos seus agressores”, aponta.
Esse cenário fica ainda mais dramático quando considerada a cultura da impunidade, sobretudo em relação a crimes sexuais. Aliás, o PL do Estuprador vai no sentido oposto de resolver esse problema, uma vez que iguala o aborto ao homicídio e pune a vítima com condenações que podem ser maiores do que a do criminoso.
“De certa maneira, os homens entendem que essas violências continuarão impunes, que eles podem continuar fazendo porque historicamente, no nosso país, esse tipo de violência vem sendo permitido”, salienta Juliana.
Para lidar com essa ampla gama de aspectos que envolvem a questão da violência sexual, é preciso, entre outras coisas, superar o tabu em torno do tema. “É um assunto ainda interditado e que deveria ser tratado nas escolas e dentro de casa. A gente precisa instruir e informar as crianças e também os profissionais que vão receber, nas unidades de saúde, crianças potencialmente vítimas de violência, de maneira a saber identificar seus sinais”, avalia Juliana.
Além disso, defende que, para além da educação e da punição pela via legal, é preciso criar uma “rede de apoio e proteção muito potente e capacitada para acolher, para ouvir, para identificar as violências e para proteger essas vítimas”.
Nos próximos dias, o Vermelho trará novas reportagens sobre outros dados levantados pelo Atlas.