Juros altos, câmbio volátil e desindustrialização continuam como legados do Plano Real
Tânia Rego ABr
O Plano Real, que completa 30 anos nesta segunda-feira (1º), trouxe estabilidade econômica ao Brasil, derrubando a hiperinflação que assolava o país, a partir de pilares que deixaram estragos que praticamente impediram o Brasil se tornar a potência econômica prometida durante as décadas anteriores. Os remédios utilizados para alcançar o controle inflacionário, como os juros altos e a abertura do mercado financeiro, deixaram um gosto amargo para certos setores da economia, especialmente a indústria.
Economistas apontam que essas medidas dificultam a sobrevivência da indústria nacional e tornam a economia mais vulnerável a volatilidades no câmbio.
A questão dos juros altos
Nas últimas décadas, a Taxa Selic, juros básicos da economia, tem sido um ponto central nas discussões políticas. Desde que o novo governo, após o Banco Central (BC) interromper o ciclo de queda dos juros, mantendo-os em 10,5% ao ano na última reunião do Comitê de Política Monetária (Copom), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva criticou fortemente o presidente do BC, Roberto Campos Neto. Essas críticas resultaram em maior volatilidade cambial.
Os debates sobre os juros e o câmbio são, na verdade, questões estruturais desde a criação do real. Desde então, os juros altos têm sido utilizados como instrumento para controlar o consumo. Quanto mais caro o crédito, menos se investe e menos se compra, mantendo a inflação sob algum controle. O câmbio sobrevalorizado foi outra ferramenta, com o objetivo de estimular a entrada de produtos importados para evitar a explosão dos preços dos produtos nacionais, algo que devasta a indústria nacional.
“O Plano Real teve duas âncoras, que são o câmbio e os juros. A taxa de câmbio se valorizou, com o real valendo mais que o dólar nos primeiros meses do plano, porque os juros foram para o espaço. Com isso, entraram importados para competir com os preços locais, então os preços foram jogados para baixo pela competição também. Mas isso começou a criar problemas de déficit na balança comercial”, explica a professora de economia da Fundação Getulio Vargas (FGV) Virene Matesco.
Alexandre Espírito Santo, economista-chefe da Way Investimentos e professor de economia do Ibmec, reforça que os juros altos foram “essenciais” para atrair capital financeiro ao Brasil no início do plano econômico, afinal, o Brasil paga juros melhores para os estrangeiros ricos que investem, recursos brasileiros que somem como enxurrada do país. “Um dos medos que se tinha era que a moeda antiga, que era hiperinflacionada, contaminasse a moeda que estava nascendo. Para isolar esse contágio, [a solução] foi usar o mecanismo da âncora cambial. Ao mesmo tempo, ter juro alto era importante, inclusive para atrair dinheiro estrangeiro e ajudar a manter o dólar baixo”, recorda.
Estouro da âncora cambial
Inicialmente prevista para ser temporária, a âncora cambial foi mantida por quase cinco anos. O país migrou de um modelo de câmbio fixo para um sistema de bandas cambiais, cujo limite superior subia assim que o dólar atingia o valor máximo da banda. Com poucas reservas internacionais e vítima de ataques especulativos após as crises da Ásia, em 1997, e da Rússia, em 1998, o país liberou o câmbio em janeiro de 1999, criando um sistema de “flutuação suja”, no qual o dólar flutua livremente na maior parte do tempo, com intervenções governamentais em momentos de maior volatilidade.
A âncora cambial foi substituída pelo sistema de metas de inflação, em vigor até hoje e alterado para um modelo de meta contínua a partir de 2025. O dólar, que estava em cerca de R$ 1,20 no início de 1999, atualmente gira em torno de R$ 5,50.
Por outro lado, a dívida pública externa, que foi um pilar de crises econômicas no século 20, foi quitada, com o Brasil se tornando credor externo desde 2006. Isso se deve, em grande parte, aos superávits comerciais impulsionados pelo agronegócio, com as reservas internacionais chegando a US$ 355,6 bilhões no fim de maio deste ano.
Desafios para a indústria
Apesar da mudança de regime cambial, o Plano Real deixou heranças ainda observadas na economia brasileira. Os juros altos continuam sendo fundamentais para manter os preços dentro dos limites da meta de inflação, mas são criticados por economistas heterodoxos, pelo setor produtivo, pelas centrais sindicais e por correntes políticas como inibidores do crescimento econômico.
Leandro Horie, economista do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), aponta que os juros altos e a dependência do mercado financeiro incentivam o agronegócio e desindustrializam o país. Segundo ele, a âncora cambial não desapareceu completamente, já que, em diversos momentos nos últimos 30 anos, o câmbio ficou mais valorizado que a taxa de equilíbrio, desfavorecendo o produtor nacional e incentivando as importações.
“O Plano Real foi baseado em uma sobrevalorização cambial e taxas de juros altas. Isso causou muito problema para a indústria. Porque os juros encareceram o investimento da indústria nacional e baratearam a importação. De fato, a indústria começou a fraquejar no fim da década de 1980, mas despencou na década seguinte. Paralelamente, a globalização aumentou a dependência de insumos importados, o que na prática torna o câmbio uma variável importante, mesmo com a âncora formalmente não existindo.”
Horie, no entanto, reconhece que, desde a pandemia, o real está desvalorizado. “Essa alta do dólar deve-se mais a fatores geopolíticos e aos juros altos nos Estados Unidos e em outras economias avançadas”, explica. “Mas os governos, sempre que podem, atuaram para baixar o dólar por meio da flutuação suja.”
A eterna ênfase nas reformas neoliberais
Se os economistas heterodoxos (desenvolvimentistas) atribuem os juros altos à abertura do mercado financeiro, os economistas ortodoxos (neoliberais) atribuem as taxas elevadas à falta de reformas que liberalizem a economia. Com isso, a controvérsia gira em torno de fatores que podem aumentar ainda mais o fundo do poço. Os neoliberais propõem medidas que tendem a ampliar ainda mais o fosse que impede o Brasil de industrializar-se, assim como concentrar mais renda nas mãos dos mesmos.
As medidas propostas pelos ortodoxos que criaram o Plano Real preveem sempre austeridade fiscal, que impede o investimento social e ignoram que os juros altos são defendidos para pagamento de serviços da dívida para os ricos donos dos fundos da dívida pública. Mesmo quando não motivos para manter os juros altos, como no momento em que a inflação cai constantemente, o Banco Central independente mantém os juros em padrões fora de qualquer parâmetro internacional.
Um dos criadores do Plano Real, Edmar Bacha, diz que os juros altos são consequência de desequilíbrios históricos do país. “A taxa de juros sempre foi alta no Brasil, mas a inflação era tão alta que as pessoas nem notavam. A taxa de juros era muito alta porque o Brasil era um país caloteiro. Estamos, ao longo desses anos, tentando evitar esse problema. Mas, para isso, é preciso ter contas do governo sob controle. Nós tínhamos essas contas sob controle, mas elas saíram de controle durante a pandemia. E agora está muito difícil o atual governo controlá-las novamente”, argumenta.
A hegemonia neoliberal diz que qualquer governo, não apenas o atual, deve comprometer-se com o superávit primário (economia de recursos para pagar os juros da dívida pública) para manter o legado do Plano Real. O superávit primário é outro pilar do Plano Real que vem sendo questionado como nunca pela economia heterodoxa, embora o ministro Fernando Haddad continue insistindo nele. Essa medida levada a ferro e fogo tem sido responsável, no entanto, por cortes drásticos de investimento que poderiam alavancar a economia e neutralizar o déficit primário.
Outros vocalizadores do neoliberalismo, Alexandre Espírito Santo, do Ibmec, defende a continuidade de reformas constitucionais baseadas em dados manipulados e artificiais sobre o serviço público. “Ainda temos várias reformas importantes para fazer, como a administrativa, que reduza os privilégios de parte do serviço público”, declara. No entanto, sempre que essas reformas são propostas, mantém-se privilégios de setores mais bem remunerados, enquanto se ataca a aposentadoria dos menores salários e outros benefícios básicos.
Aelxandre também cita a regulamentação da primeira fase da reforma tributária, que trata dos tributos sobre o consumo, e da segunda fase, que tratará do Imposto de Renda, como medidas necessárias para reduzir os juros no médio e no longo prazo.
A realidade dos consumidores
A redução do carrinho de compras é sintoma da inflação acumulada nos últimos anos. De julho de 1994, mês da criação do real, a maio de 2024, a inflação oficial pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) acumula 708,01%, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Isso significa que R$ 1 na criação do real valem R$ 8,08 atualmente. Ou que é preciso gastar R$ 100 hoje para comprar o mesmo que R$ 12,38 compravam há três décadas.
No aniversário de 30 anos, o real enfrenta o desafio de manter o poder de compra, num cenário de inflação global crescente. “A inflação alta no pós-pandemia [de covid19] é perfeitamente explicável e abrange todo o planeta. Tivemos problemas sérios, de rompimento de cadeias produtivas, uma mudança geopolítica mundial, com guerras regionais, e mudanças climáticas que pressionam principalmente a oferta de alimentos”, explica a professora Virene Matesco. Ela, no entanto, desconsidera o encolhimento industrial defendido pelo Plano Real e os neoliberais que levou aos gargalos da pandemia.
Alexandre Espírito Santo diz que a inflação pós-pandemia é complexa e desafia os Bancos Centrais em todo o mundo. “Tivemos um choque de oferta, com a quebra de cadeias produtivas no mundo inteiro que ainda estão se recompondo. Além disso, os bancos centrais injetaram muito dinheiro na economia global, dinheiro que ainda está circulando. A inflação no pós-pandemia tem várias causas e ainda vai durar muito tempo”, diz. Agora, as cadeias produtivas que foram divididas entre os países ricos, com a tecnologia e produtos de alto valor agregado, e os países pobres com as commodities e indústria primária, são reconsideradas.
Impacto dos salários
Outra maneira de interpretar a inflação acumulada de 708,01% seria dizer que o real perdeu 87,62% do valor em 30 anos. Isso, no entanto, não significa que a população tenha ficado mais pobre na mesma proporção, pois o poder de compra é definido também pela elevação dos salários.
“A inflação depende de muitos fatores. No médio e no longo prazo, a economia se adapta às variações, inclusive à alta recente do câmbio que estamos experimentando. Existe a reposição dos salários e a interação do preço de um insumo com o restante da cadeia produtiva”, diz Leandro Horie.
Na prática, a reposição do poder de compra é influenciada pelo crescimento econômico. Em momentos de expansão da economia e de queda do desemprego, os trabalhadores têm mais poder para negociar reajustes salariais. Segundo o Dieese, 77% das negociações salariais resultaram em aumento real (acima da inflação) em 2023. Até maio deste ano, o percentual subiu para 85,2%. Com os reajustes acima da inflação, os preços se estabelecem num nível mais alto, sem a possibilidade de retornarem aos níveis anteriores.
Novos instrumentos para combater a inflação
Leandro Horie destaca que os instrumentos atuais de política monetária, como juros altos, têm sido insuficientes para segurar o aumento de preços, já que a inflação atual decorre de choques externos sobre a economia, como tragédias climáticas e tensões geopolíticas.
“No regime atual de metas de inflação, o Banco Central atua como se a inflação fosse meramente de demanda e eleva os juros para reprimir a demanda interna. Só que a inflação, principalmente nos tempos atuais, é de uma natureza de choque de oferta, que a gente chama. A grande questão que tem de ser colocada, em nível global, é que outras formas os governos podem usar para segurar os preços, até porque a inflação envolve centenas de itens”, diz Horie.
Ao longo de três décadas, o real enfrentou três picos de inflação anual de dois dígitos. O primeiro em 2002, quando o IPCA ficou em 12,53%, influenciado pelas eleições presidenciais daquele ano. O segundo ocorreu em 2015, quando o índice atingiu 10,67%, após a retirada de subsídios sobre a energia. O mais recente foi em 2021, quando a inflação encerrou em 10,06%, após a fase mais aguda da pandemia de covid-19.
Perspectivas para o futuro
Em 2024, a inflação começou o ano em desaceleração. O IPCA, que acumulava 4,51% nos 12 meses terminados em janeiro, caiu para 3,69% nos 12 meses terminados em abril. O índice continua em queda, mesmo que em ritmo menor, para 3,93% nos 12 meses terminados em maio, apesar do impacto das enchentes no Rio Grande do Sul e da seca na região central do país. O mercado financeiro, com objetivo de pressionar por taxa de juros altos, prevê altas, embora tenha “se surpreendido” com índices decrescentes, desde que o Governo Lula começou.
Neste aniversário de 30 anos, o Plano Real continua a ser um tema de debate e reflexão, enquanto o país busca equilibrar a estabilidade econômica com o crescimento e o desenvolvimento sustentável.
Cezar Xavier com informações da Agência Brasil