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Em dezembro de 2023, sob a gestão de Ricardo Nunes, a Prefeitura de São Paulo suspendeu o serviço de aborto legal no Hospital Municipal e Maternidade da Vila Nova Cachoeirinha, localizado na Zona Norte da capital. Esta unidade era a única no estado que realizava o procedimento em gestações que ultrapassassem as 22 semanas.

Em fevereiro de 2024, uma decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo obrigou a prefeitura a oferecer o aborto legal em outras unidades municipais de referência. Paula Sant’Anna, defensora pública do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres, afirmou que a cidade de São Paulo deixou de ser um serviço de referência em aborto legal para mulheres vítimas de violência sexual. Ela destacou que a suspensão do serviço no Hospital Municipal de Vila Nova Cachoeirinha deixou diversas mulheres vítimas de violência desamparadas.

“No Vila Nova Cachoeirinha havia uma equipe que estudou, se aperfeiçoou para atender esses casos e sempre a devolutiva era a de que meninas e mulheres eram muito bem acolhidas nesse serviço”, declarou.

 “Com a suspensão o que nós vemos? Que hoje não temos mais um serviço de referência para esses casos aqui no município. Esse é um pouco da atualidade do município de São Paulo que torna tudo mais oneroso para as mulheres”, disse Paula Sant’Anna.

A Defensoria Pública de SP recebe semanalmente diversos casos de mulheres que foram vítimas de violência sexual e que precisam realizar um aborto com urgência, previsto em lei.

Mas Paula Sant’Anna afirma que o atendimento público na rede municipal de saúde da cidade de São Paulo tem negligenciado o acesso das mulheres ao serviço, especialmente quando a gestação já superou as 22 semanas.

“Quando a gente verifica, os agendamentos demoram ou já recebemos casos de mulheres e meninas que não conseguiram fazer o teste de gravidez. Há uma tendência de culpabilizar que aquela menina mulher demorou para procurar aquele sistema. Mas na verdade muitas vezes elas procuraram, mas recebem informações equivocadas, agendamentos longínquos onde elas precisam de ajuda para chegar até o serviço de referência e não conseguem. Então, é sobre isso que a gente está falando quando a gente fala de barreiras para acesso a esse abortamento”, declarou.

Um dos casos apoiados por Paula Sant’Anna na Defensoria Pública foi o de Maria Clara, pseudônimo de uma mulher vítima de estupro. Maria Clara teve o aborto legal negado por três hospitais em São Paulo e só conseguiu realizar o procedimento em outro estado com a ajuda de defensores públicos. A primeira barreira enfrentada foi no Hospital da Mulher, referência estadual em casos de violência sexual. 

Maria Clara descobriu a gravidez apenas ao completar 24 semanas. “Não tive nada de diferente, não tive barriga, não tive sintoma, não tive nada”, relatou. “Eu fiz o exame de sangue, fiz o ultrassom e passei na médica. Ela me falou que como a gestação estava muito avançada, eu teria que procurar outra unidade e ajuda na Defensoria. A médica só falou que não poderia fazer e pronto. Depois ela me encaminhou para assistente, e a assistente me disse que eu teria que procurar ajuda. Só me passaram o endereço da defensoria e eu fui por conta própria”, relembrou.

Com a ajuda da Defensoria Pública, Maria Clara foi encaminhada ao Hospital Municipal do Campo Limpo, na Zona Sul de São Paulo, para realizar a interrupção da gravidez. Contudo, o procedimento foi novamente negado, apesar de ser garantido por lei.

“Fiz a triagem e ele [médico] relatou a mesma coisa: que não poderia fazer no hospital [o aborto] porque estava muito avançada a gestação. Eu já estava perdendo as esperanças. Já não estava muito bem psicologicamente e saí de lá mais abalada. Até então, eu estava achando que eu estava errada em tudo”.

Seguindo a orientação da Defensoria Pública, Maria Clara seguiu para a terceira e última tentativa: o Hospital Municipal Tide Setubal, na Zona Leste da capital.

Na peregrinação para conseguir o aborto legal, Maria Clara conta que recebeu o pior atendimento no Hospital Municipal Tide Setubal, onde ela foi obrigada a ouvir os batimentos cardíacos do feto.

 “Como o atendimento estava agendado, achei que eu ia chegar e iam estar me esperando. O atendimento foi péssimo, tive que falar perto de pessoas e o pior de tudo foi precisar ouvir o coração do feto. Eu pedi para ele [profissional de saúde] parar e tirar, levantei e saí da sala”, desabafa.

A equipe médica ainda tentou convencê-la a não realizar o aborto. “Me falaram para tentar segurar o neném até nove meses, que eles me dariam laqueadura, que iam cuidar de mim e me buscar para fazer a cirurgia e tudo mais. Eu fui embora para casa acabada, não sei nem explicar. Eu já estava pensando como fazer em casa sozinha porque eu não tinha condições”.

A vítima só conseguiu realizar o procedimento em outro estado. “A defensoria me falou sobre um projeto que entrou em contato comigo e explicou como seria feito em outro estado. Foi tudo muito rápido e muito bem explicado. Nossa parecia que eu estava fora do Brasil. Foi ótimo. Desde a abordagem do começo, os exames… Foi super respeitoso”, conta.

Para a defensora pública Paula Sant’Anna, o atendimento médico que Maria Clara recebeu no hospital pode ser equiparado a tortura.

“Há uma tendência de culpabilizar que aquela menina ou mulher demorou para procurar o sistema de saúde. Na verdade, muitas vezes elas procuram, mas recebem informações equivocadas, agendamentos longínquos, precisam de ajuda para chegar até o serviço de referência e não conseguem. Então, é sobre isso que a gente tá falando quando a gente fala de barreiras para acesso a esse abortamento”, explica a defensora.

Fonte: Página 8