Mulheres vão às ruas no Rio contra PL. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Ao tentar impor sua visão obtusa para mobilizar sua base e tentar desgastar o governo Lula, a extrema direita conseguiu a proeza de extrapolar o próprio grau de radicalismo misógino e punitivista — que já é alto — ao lançar mão do projeto de lei que equipara o aborto após 22 semanas de gravidez ao crime de homicídio, mesmo em casos de estupro. 

Enquete disponível no site Câmara mostrou que 88% dos votantes (702.345, até o início da tarde desta sexta-feira, 14) discordam totalmente da proposta. Apenas 12% concordam totalmente (92.668). 

Os que concordam na maior parte (2.070), os indecisos (303) e os que discordam na maior parte (3.275) não chegaram a pontuar percentualmente. 

O resultado vai ao encontro das mais diversas opiniões contrárias ao projeto, manifestadas nas ruas, nas redes, na grande maioria dos veículos de comunicação, por movimentos, entidades e especialistas ligados ao tema, principalmente após o requerimento de regime de urgência para a tramitação do texto ter sido aprovado, “a toque de caixa”, na última quarta-feira (12), sob o comando do presidente da Câmara, Arthur Lira. 

Considerando a enquete e essas manifestações, é possível concluir que, embora o Brasil seja um país majoritariamente conservador em questões morais, como a legalização do aborto, a proposta dos bolsonaristas e da bancada da Bíblia parece ter ultrapassado os limites até de quem se identifica mais com o espectro ideológico à direita. 

Afinal, além de punir quem faz o procedimento após o período estabelecido, se aprovada, a proposta pode impor condenação maior à vítima do que ao estuprador e vai atingir, sobretudo, as meninas, que são a parcela mais violentada da população. 

“Cidadão de bem”

Importante destacar que o deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), autor dessa “pérola” da desumanidade, é teólogo de profissão e pastor evangélico, o típico homem branco, “cristão” e reacionário que insiste em ditar normas que afetam a vida das mulheres — não a dele. 

Este mesmo “cidadão de bem” deixou claro que está usando um tema de tamanha gravidade para criar desgastes com o governo e tentar afastá-lo dos segmentos religiosos. “Será um bom teste para o Lula provar aos evangélicos se o que ele assinou na carta era verdade ou mentira” , declarou Cavalcante, considerando a possibilidade de aprovação da proposta.  

O pastor deputado se referia à carta do presidente, dirigida à comunidade evangélica ainda em 2022, na qual, entre outros pontos, destacava: “Sou pessoalmente contra o aborto e lembro a todos e todas que este não é um tema a ser decidido pelo Presidente da República e sim pelo Congresso Nacional”.

O projeto em pauta, vale destacar, não trata de legalizar aborto, mas de retroceder 84 anos em dois direitos conquistados pelas mulheres nos anos 1940: o de poder abortar em situações de estupro e de risco de vida à mulher. A possibilidade de fazer o procedimento em casos de anencefalia fetal foi acrescentada em 2012 pelo Supremo Tribunal Federal (STF). 

Diante da repercussão negativa da aprovação do requerimento, o próprio autor tentou, ao seu modo peculiar, amenizar o estrago dizendo que pensa, também, em propor aumentar a pena para os estupradores, como se essa “compensação” resolvesse o problema das meninas e mulheres violentadas. 

Muita gente já sabe, mas não custa lembrar: de acordo com o Anuário 2023 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 2022 o Brasil registrou o maior número de estupros da história, com cerca de 205 casos por dia, num total de quase 75 mil vítimas  (89% do sexo feminino), crescimento de 8,2% em relação a 2021. 

Desse total, quase 57 mil foram estupros de vulneráveis e as principais vítimas, 61%, têm entre zero e 13 anos. A grande maioria, 68%, foi violentada em sua própria casa, 86% por gente conhecida — sendo 64%, por familiares. 

A ministra das Mulheres, Cida Gonçalves alertou que “o Brasil delega a maternidade forçada a essas meninas vítimas de estupro, prejudicando não apenas o futuro social e econômico delas, como também a saúde física e psicológica. Ou seja, perpetua ciclos de pobreza e vulnerabilidade, como o abandono escolar”. 

Preocupação

O tema é tão grave que também repercutiu na ONU. Conforme noticiou o jornalista Jamil Chade, do UOL, a porta-voz de Direitos Humanos do organismo, Liz Throssell, afirmou, nesta sexta-feira (14), que a instituição está “preocupada com a aprovação do procedimento de emergência para essa lei, que equipara o aborto com mais de 22 semanas a um homicídio”. 

“A porta-voz lembrou que, no mês passado, o Comitê sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW) ‘deu uma recomendação para descriminalizar aborto em todos os casos e para que mulheres e meninas tenham acesso ao aborto seguro’”, relatou Chade. O Comitê também alertou para as consequência do avanço do que classificou como “fundamentalismo religioso” no Brasil.

Nesta quinta-feira (13), milhares de pessoas, a maioria mulheres, de diversas cidades brasileiras foram às ruas contra o projeto. Figuras públicas, autoridades, parlamentares, jornalistas, especialistas, cidadãos e cidadãs comuns também usaram as redes e veículos de comunicação para chamar atenção sobre as consequências do projeto. 

Entidades e movimentos sociais também têm se manifestado contra e buscado reverter o apoio parlamentar à proposta, que deverá ter maioria na Câmara quando for a plenário. 

“A gente está institucionalizando a barbárie. A gente está deixando com que cada um haja com a sua própria energia, na medida das suas possibilidades para lidar com uma situação criminosa e que o Estado brasileiro está se recusando a equacionar”, disse, à Agência Brasil, a advogada Juliana Ribeiro Brandão, pesquisadora sênior do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).

De acordo com o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), o PL é inconstitucional, viola o Estatuto da Criança e do Adolescente e contraria normas internacionais que o Brasil é signatário. Além disso, acrescentou, “representa um retrocesso aos direitos de crianças e adolescentes, aos direitos reprodutivos e à proteção das vítimas de violência sexual”.