A catástrofe que atinge o Rio Grande do Sul reavivou o debate sobre a regulação das redes sociais, que já mostrou ser central para a vida em sociedade e para a democracia. Se as eleições presidenciais de 2018 e 2022, a tentativa de golpe de 2023 e, em especial, a pandemia de Covid-19 mostraram a face mais cruel do mau uso das plataformas, o desastre enfrentado pelos gaúchos reafirmou que não há limites para quem usa a mentira e a manipulação, em escala industrial, como armas de poder político e instrumentos de lucro certo e fácil. 

Ao longo das últimas semanas, desde que o território gaúcho se viu tomado pela chuva, com a maior parte de seus municípios afetada, milhares de desalojados e desabrigados e um número de mortos que não para de subir, informações falsas ou distorcidas começaram a pipocar nos grupos de Whats e nas principais redes sociais, como Facebook, Instagram, Twitter, TikTok e Youtube. 

Em comum, acusações sórdidas e levianas, como as de que a população só podia contar consigo mesma e com o empresariado para se salvar; que o poder público não só não estaria fazendo nada, como ainda estaria atrapalhando quem fazia — incluídas aí as Forças Armadas —, que haveria ondas de violência e corpos às centenas boiando etc. 

Ainda que possa haver gente bem intencionada entre os que compartilham, o fato é que por trás dessas falsas notícias, há, como em outras ocasiões, a mesma máquina de produção cujos objetivos são claros: descredibilizar o Estado e suas instituições, sobretudo o governo federal, como forma de valorizar a “sociedade civil” e a iniciativa privada e corroer a democracia. 

Tal narrativa serve aos interesses da extrema-direita, do bolsonarismo — setores mais atrasados e autoritários da sociedade que sempre tentaram se vender como antissistema. Em um cenário de destruição, desespero e desesperança, essa tática cruel rende frutos para quem lucra, política e financeiramente, com a dor e a desgraça. 

Afinal, é sobre a “terra arrasada” — seja por uma pandemia devastadora, seja por um desastre ambiental —, que esses setores pretendem vender, como solução salvadora, uma nova sociedade travestida de ultralibertária, mas que não passa de uma mistura de fanatismo religioso, armamentismo, reacionarismo, preconceitos de toda ordem, poder miliciano, ignorância, meritocracia e Estado mínimo. 

A mentira como arma

Pesquisa Quaest, feita com 2.045 pessoas e divulgada no dia 12 de maio, mostrou que 31% dos entrevistados disseram ter recebido alguma fake news relacionada à tragédia do RS. Destes, 35% as receberam em grupos de WhatsApp; 24% de amigos e 11% de políticos. 

Os dados reforçam que são muitos os elementos que fazem com que uma notícia falsa circule com sucesso. Entre eles estão a assertividade e o alarmismo da linguagem, que dão um senso de urgência, mexendo com o medo e a ansiedade das pessoas, principalmente as já fragilizadas.

Outro elemento central, usado para garantir credibilidade, é a manipulação de imagens verdadeiras ou a criação de outras supostamente reais, como ocorre quando são utilizados fotos ou vídeos de fatos que ocorreram em outros lugares e momentos ou que foram gerados por inteligência artificial. 

Também é importante para o êxito da empreitada quem compartilha ou repassa a mensagem. Afinal, receber de alguém de confiança ou ver aquela “notícia” no feed de alguma figura pública tida como séria faz toda a diferença. 

Soma-se a isso o mecanismo de formação de bolhas das redes, que faz com que cada pessoa receba aquilo que é convergente com sua visão de mundo ou ideologia. 

Cabe destacar que para além de quem faz e quem recebe, há o papel fundamental desempenhado pelas big techs, empresas bilionárias que se utilizam desses instrumentos para lucrar de maneira pornográfica, seja com causas justas, informações verídicas e o comércio regular, seja com o esgoto das fake news.

Esse cenário mostra, mais uma vez, que criar regras e responsabilidades para as big techs, bem como formas de estancar a produção e disseminação de mentiras em larga escala, são tarefas fundamentais para qualquer país. 

Antídoto

No Brasil, o debate sobre a regulação das redes vem acontecendo há anos, especialmente no processo em torno da construção do projeto de lei 2630, que ficou conhecido como PL das Fake News. 

A proposta, relatada pelo deputado Orlando Silva (PCdoB-SP), vinha evoluindo com amplo debate junto a diferentes segmentos sociais e tramitava na Câmara, mas sofreu uma forte ofensiva das empresas de tecnologia e de parlamentares de extrema-direita quando estava pronta para ir a votação em maio de 2023. 

Desde então, ficou parada na Casa até que mais recentemente — em meio às discussões em torno dos ataques de Elon Musk, dono do X, a autoridades e instituições brasileiras — recebeu o “tiro de misericórdia” do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), que decidiu começar do zero a construção de uma matéria sobre o tema. 

Diante de tudo isso, e em meio ao vale-tudo das redes, cabem muitos questionamentos aos diretamente envolvidos no tema. Quantas milhares de pessoas se deixaram levar pelo discurso de que a Covid-19 não passava de uma “gripezinha”, que era preciso deixar de “mimimi”, voltar ao trabalho e manter a economia funcionando ou que a vacina teria efeitos colaterais, como pregava o ex-presidente e seus seguidores nas redes? 

Quantas dessas ficaram doentes e quantas perderam a vida? Quantas, até hoje, deixam de vacinar seus filhos, num país que já foi referência mundial em imunização, por conta dessas mentiras? Quantos adolescentes e jovens já morreram ou mataram estimulados pelo ódio e a banalização da violência nas redes? Quantas meninas e mulheres, quantas pessoas LGBTs, quantos negros foram atacados por discursos misóginos, homofóbicos e racistas? oE quantas pessoas, em meio ao desespero de tragédias como as enchentes no RS, se sentiram abandonas por serem induzidas a acreditar que nada estava sendo feito pelo poder pública? Quantas foram desencorajadas a ajudar? E uma última pergunta: afinal, quantas tragédias terão ainda de acontecer até que o Brasil regule as redes?