Falta de manutenção nas bombas e diques fez com que a capital gaúcha ficasse embaixo d'água | Foto: Reprodução

Funcionários do Departamento Municipal de Água e Esgoto (Dmae) da Prefeitura de Porto Alegre, autarquia responsável pelo abastecimento de água, esgotamento sanitário e drenagem urbana da capital gaúcha, denunciam os governos de Nelson Marchezan Júnior (PSDB) e de Sebastião Melo (MDB) de reter de cerca de R$ 400 milhões do caixa do departamento.

Segundo os funcionários, o deliberado sucateamento do órgão agora é fator decisivo para o colapso dos sistemas de abastecimento de água da cidade.

De acordo com os trabalhadores, em 2015, o valor estava em R$ 141 milhões e, desde então, os governos Marchezan e agora Melo continuam acumulando recursos que deveriam ser revertidos em investimentos. De R$ 239,72 milhões investidos em 2012, o valor caiu para R$ 136,87 milhões em 2022. Nesse período, em esgoto, a queda no investimento foi de R$ 156,7 milhões para R$ 13 milhões dez anos depois. Em esgoto pluvial, a redução foi de R$ 24,3 milhões em 2022 para R$ 11,5 milhões em 2022, uma queda de 50%.

“Por que isso?”, questiona a engenheira civil Sandra Darui, atualmente coordenadora do Conselho de Representantes Sindicais do Departamento Municipal de Água e Esgotos (Cores/Dmae). “Uma das metas do Dmae é investir 15% da receita e não está fazendo isso há muitos anos. O caixa do Dmae sempre foi para fazer melhoria no saneamento público. É um órgão que tem que reinvestir o que ele pegou na tarifa, na melhoria dos serviços públicos, na melhoria do esgotamento, da captação e da drenagem, e isso não foi feito.” Ela enfatiza que os investimentos diminuíram em todas as áreas, principalmente na drenagem e no esgotamento sanitário.

De acordo com entrevista do Hidrólogo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Fernando Fan, na Rádio Gaúcha, a culpa do que aconteceu em Porto Alegre é da falta de manutenção. “Não tínhamos manutenção e treinamento adequado, talvez, para lidar com Guaíba subindo tão rápido, mas a gente pode afirmar que, se não tivesse tido isso, nós não teríamos esse efeito em Porto Alegre, isso a gente pode afirmar. Se por exemplo, a vedação tivesse perfeita, as casas de bomba tivessem em dia, nós não teríamos o trágico evento em Porto Alegre. Porque o sistema deveria nos proteger até a cota 6 metros. Ele foi projetado por proteger até cota 6 metros e nós chegamos até cota 5,30 metros. Então, estamos diante de um erro pesado na estrutura de Porto Alegre”, afirmou o hidrólogo.

De acordo com o engenheiro Décio Botta, que trabalhou na construção das 23 casas de bombas que fazem parte do sistema. As estruturas foram muito bem projetadas e bem distribuídas, levando em consideração as necessidades de cada área, tendo em vista a topografia da capital. Entretanto, o que se viu nos últimos anos foi uma falta de investimento nas estruturas, como motores mais potentes para absorver a água de áreas de maior impermeabilização da cidade.

“E essa falta de manutenção acabou resultando no retorno da água. Tanto é que só quatro ficaram funcionando. Com manutenção, a história poderia ser diferente. O sistema só falhou por falta de incremento, por não ter bombas mais potentes pela falta de manutenção das bombas existentes”, explicou o engenheiro.

Outro ponto que Décio Botta reforçou é a robustez do sistema construído na capital, principalmente se comparado com outras estruturas existentes no mundo. “Porto Alegre é uma das poucas cidades do Brasil com um sistema como esse. Realmente faltou incremento e ações de conservação, pois é um sistema moderno e eficiente se estiver funcionando”, completou Botta.

O Conselho de Representantes Sindicais do Departamento Municipal de Água e Esgotos (Cores/Dmae) avalia que as receitas deveriam estar aumentando, pois o número de economias cadastradas eram de 622 mil em 2011 e passaram a ser 736 mil em 2021. Entretanto, as receitas diminuíram nos últimos 10 anos. Para o Cores/Dmae, tal redução é consequência da política tarifária do órgão que não acompanhou os índices de reajustes oficiais e pela falta de efetivo de servidores na área comercial para fazer fiscalizações necessárias, autuações de infrações, corte de economias inadimplentes e atualização cadastral dos imóveis.   

O Cores/Dmae ainda ressalta que apesar da autarquia ter sido selecionada, em 2019, pelo Ministério das Cidades para obter financiamento de R$ 40 milhões destinado à contratação de operações de crédito para execução de ações de saneamento básico, o governo Marchezan desistiu dos recursos. O valor seria direcionado para ações de redução e controle de perdas de Porto Alegre, que poderia auxiliar principalmente os sistemas de abastecimento de água das zonas Leste e Extremo Sul da Capital, regiões com problemas frequentes.

O órgão também deixou de captar recursos para projetos e obras de esgotamento sanitário na Zona Norte, em 2019, porque novamente o governo Marchezan e a direção geral do Dmae desistiram da contratação de R$ 143 milhões em financiamentos, apesar da autarquia ter sido selecionado no Programa Avançar Cidades. No caso da Zona Norte, agora duramente afetada pela enchente, além das desistências de captação de recursos para obras, houve a renúncia ao financiamento da Caixa Econômica Federal para obtenção de R$ 7,5 milhões em Estudos e Projetos para Esgotamento Sanitário do SES Navegantes.

Vale destacar ainda, que o último grande concurso do Dmae foi em 2014. Em 2007, a autarquia tinha 2.493 funcionários. Em 2024, esse número é em torno de 1.050, uma redução em mais de 50%, sendo que a cidade não diminuiu nesse período, pelo contrário. Em 2022, um pedido de contratação emergencial de 400 funcionários foi negado por Melo, cujo esforço político estava concentrado em conquistar apoio para a privatização do órgão.

Em julho de 2023, com dificuldade para emplacar a privatização, Melo autorizou a criação do novo concurso, porém, a seleção ainda não foi realizada. O concurso é para apenas 33 vagas, embora os funcionários peçam a contratação urgente de 400 servidores desde 2022.

Ex-servidora do setor de Estrutura Urbana da Prefeitura de Porto Alegre, Lígia Bergamaschi Botta, que também foi professora de Arquitetura e Urbanismo da UFRGS, afirmou que o sistema é moderno, “só que sofre com a falta de manutenção. Imagina se os cuidados com o sistema de Amsterdã fossem assim. As cidades dos Países Baixos ficariam inundadas. O nosso sistema foi muito bem planejado e executado. Foram equipes com vasta experiência na Europa que o projetaram. Só faltou manutenção”.

“O nosso sistema foi muito bem planejado e executado. Foram equipes com vasta experiência na Europa que o projetaram. Só faltou manutenção”, ressaltou Lígia. Ela aponta ainda que a capital gaúcha está passando por um processo de falta de planejamento urbano, que acabou piorando as condições da enchente histórica das últimas semanas.

“Porto Alegre vem sendo ocupada com uma densidade muito alta, com um grande uso do solo, que está ficando impermeável. Quando a água cai, ela vai muito rápido para as áreas baixas. Nossa estrutura está sobrecarregada. As redes não têm capacidade e todo esse contexto vai piorando cada vez mais a conjuntura da cidade. Isso tudo contribuiu com a forma como a enchente atacou a capital. Temos que nos conscientizar que o plano diretor precisa estar voltado para o bem-estar da população. Esse é o grande mote do planejamento urbano”, finalizou.

Fonte: Página 8