Desastre explicita alto custo da inação de governos e parlamentos com o clima
Eventos extremos com impactos de tamanha magnitude, como o que ocorre no Rio Grande do Sul, em geral, têm causas multifatoriais. Pelo que é possível observar até o momento, no desastre atual, há uma soma de elementos que vão das consequências da crise climática — resultado direto da hiper-exploração capitalista do planeta — até a falta de medidas governamentais, passando pela sanha de setores como o agronegócio e de ações e inações nos parlamentos.
Quando se joga o foco para as medidas de âmbito governamental que poderiam ter mudado o impacto dessa tragédia, é difícil fechar os olhos para tantos elementos que têm vindo à tona.
É certo que não é momento de politizar a tragédia, nem “apontar o dedo” para quem é culpado pelo o quê, mas também é verdade que compreender e apurar o que poderia ter sido feito e não foi é fundamental para que a reconstrução do estado seja feita sobre bases responsáveis e convergentes com o “novo normal” que se instalou com a crise climática.
Ao mesmo tempo, é necessário, de uma vez por todas, que governantes e gestores de todos os níveis da administração pública, parlamentares, empresários e sociedade civil aprendam, cada um em sua seara, a contribuir para melhorar o quadro social e ambiental, sobretudo para as populações mais vulneráveis, frente a essa nova realidade. Do contrário, vidas continuarão sendo ceifadas, enquanto recursos e infraestrutura seguirão sendo varridos, gerando prejuízos de toda ordem, inclusive econômica.
Neste momento, passado pouco mais de uma semana do início das chuvas, 401 dos 497 municípios gaúchos, ou 90% do total, foram afetados, em menor ou maior grau pelas enchentes. Desses, 336 estão em calamidade pública. Cerca de 83% da população do RS, o que equivale a 10,8 milhões de pessoas, habitam essas cidades. Até a quarta-feira (8), foram contabilizadas 100 mortes, 48 mil desabrigados e um total de 1,4 milhão de prejudicados, segundo dados da Defesa Civil.
Descaso com questão ambiental e prevenção
A Bancada do PCdoB na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul considera que os recursos empenhados pelo governo do estado para questões relacionadas à mudança climática e à prevenção de tragédias dessa natureza está muito aquém do necessário. Documento elaborado pela bancada aponta que, no Orçamento de 2024, o Governo Eduardo Leite (PSDB) estabeleceu cerca de R$ 115 milhões em recursos para enfrentar os eventos climáticos nas mais diversas áreas — como meio ambiente, habitação, assistência social, bombeiros e defesa civil — valor que, segundo o cálculo da bancada, equivale a cerca de 0,14% do orçamento de gastos brutos do estado. Recentemente, foi noticiado que o valor seria de R$ 117 milhões, o que não muda substancialmente a situação.
No caso da Defesa Civil, segundo o relatório, o valor previsto foi de pouco mais de R$ 5 milhões, o que corresponde a 0,009% do orçamento líquido de gastos da administração direta e 0,006% dos custos totais do estado.
Ainda de acordo com o documento, “em programas diretamente vinculados às ações de mudanças climáticas (sem incluir valores transversais), podemos destacar um valor total de previsão orçamentária de R$ 331.312,00. Sendo deste valor nenhum um centavo para investimento, apenas custeio das ações já realizadas”.
O relatório salienta que o valor “equivale a menos que R$ 30 mil por mês em custeio de ações preventivas às mudanças climáticas. O salário anual do governador é cerca de 30% superior ao orçado pelo estado para os programas em mudanças climáticas”.
Vale lembrar, ainda, que reportagem recente da Agência Pública mostrou que o Ministério Público Federal instaurou um inquérito civil para averiguar se houve negligência ou ausência de ações preventivas das autoridades responsáveis — como prefeituras, Defesa Civil e governo do Estado —, no desastre no Vale do Taquari, em setembro do ano passado, que agora se repetiu em uma escala muito maior.
De acordo com a reportagem, um dos pontos questionados pela procuradora é a falta de implementação do Zoneamento Ecológico-Econômico (ZEE) do RS. “Os estudos iniciaram em 2012, e diagnósticos, oficinas e uma série de atividades foram finalizados em 2019. A Secretaria de Meio Ambiente e Infraestrutura (Sema) gastou US$ 8,7 milhões com consórcio formado pelas empresas Codex Remote, Acquaplan e Gitec para fazer o zoneamento. Mas até hoje o instrumento – que deveria dar suporte à gestão do território, incluindo fatores socioeconômicos, ambientais e físicos para a tomada de decisões sobre o uso da terra – nunca saiu da gaveta”, aponta.
Além disso, segundo levantamentos recentes publicados em diversos veículos de imprensa, o governo tucano do RS cortou ou alterou 480 pontos do Código Ambiental em 2019. O site Brasil de Fato lembra a reação de Francisco Milanez, ex-presidente da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan), diante da aprovação da proposta aprovada: “É um projeto desestruturante, destruidor e prostituinte, porque prostitui a questão ambiental numa liberalização infundada que destrói 10 anos de trabalho”.
Ao Portal Vermelho, Joel Goldenfum, engenheiro e diretor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) explicou que “temos uma cultura — que vem há muito tempo, de vários governos e que alguns incentivam mais, outros menos — de exploração máxima dos recursos, no caso, do solo e da água”.
Isso pode ser constatado na forma como o Pampa vem sendo devastado. No Brasil, o bioma se estende por 63% do Rio Grande Sul, o que equivale a 2,07% do território brasileiro. Aqui, foram desmatados, em 38 anos, 2,9 milhões de hectares, dimensão que se equipara a 58 vezes a área de Porto Alegre, de acordo com o MapBiomas Pampa.
Mas, houve outros sinais de que o enfrentamento aos desastres naturais ainda não estava sendo feito à altura do que o estado necessitava. Em nota relativa ao desastre de setembro, o Instituto de Pesquisas Hidráulicas da Universidade Federal do RS (UFRGS) destacou que “a cadeia de ações de prevenção, preparação e alerta dos impactos da inundação não funcionou adequadamente” naquela ocasião.
Diz, ainda, que o estado deveria “investir imediatamente em um sistema de monitoramento, previsão e alerta para reduzir a vulnerabilidade da sociedade frente a eventos extremos que possivelmente serão intensificados em decorrência das mudanças climáticas globais”.
Como forma de contribuir para melhorar as leis do RS no que diz respeito à questão, a deputada estadual Bruna Rodrigues (PCdoB) apresentou projeto de lei, no final de 2023, instituindo a Política Estadual de Atenção às Emergências Climáticas e Combate ao Racismo Ambiental.
Dentre os objetivos estabelecidos no PL estão “atuar no fortalecimento e ampliação dos sistemas de monitoramento das estações climáticas e hidrológicas; realizar estudos de impactos das vulnerabilidades climáticas e de seus mecanismos de adaptação ante aos efeitos das emergências climáticas; realizar estudos de impactos da degradação ambiental vinculado a indicadores socioeconômicos e raciais e estabelecer sistema de adaptação e mitigação”.
Passando a boiada
No âmbito federal, muita coisa também foi deixada de lado nesses últimos anos. Com Jair Bolsonaro (PL), foi inaugurada a fase de “passar a boiada” explicitamente e sem pudores em diversas áreas, especialmente a ambiental.
Em 2019, por exemplo, o governo Bolsonaro chegou a cortar 95% do orçamento destinado ao combate às mudanças climáticas. Além disso, o ex-presidente reduziu em 93% os gastos para estudos e projetos de mitigação e adaptação às mudanças climáticas nos três primeiros anos da sua gestão quando comparado com os três anos anteriores, saindo assim de R$ 31 milhões para apenas R$ 2 milhões.
E não é novidade o quanto também piorou, sob sua gestão, o desmatamento e o libera-geral dos garimpos, ao ponto de, em 2022, o governo Bolsonaro ter sido denunciado às Nações Unidas, por cinco relatores do organismo, devido à destruição do meio ambiente e violações dos direitos humanos.
O cerne da acusação dizia que o aumento descontrolado do desmatamento na Amazônia e no Cerrado, associado a um quadro de violência contra povos indígenas e comunidades tradicionais, intensifica as mudanças climáticas, ameaça a biodiversidade e compromete a alimentação, a saúde e o acesso à água em todo o Brasil e em diversos outros países.
Em março deste ano, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a existência de inconstitucionalidades durante o governo Bolsonaro, com violação de direitos socioambientais promovida por uma série de atos atentatórios ao meio ambiente.
Neste terceiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, uma série de iniciativas vem buscando reverter esse quadro, o que tem se refletido na queda dos desmatamentos e no maior diálogo internacional com o aporte de recursos estrangeiros para a preservação ambiental, entre outras medidas.
No que diz respeito especificamente a desastres como os ocorridos no RS, além das ações emergenciais e de reconstrução focadas no estado, o governo federal deverá lançar, ainda neste semestre, o Plano Nacional de Proteção e Defesa Civil, com orientações e estratégias de atuação em cinco frentes: prevenção, mitigação, preparação, resposta e recuperação.
“O PNPDC está previsto na Lei 12.608, de 2012, mas até hoje nenhum governo tinha se mobilizado para tirá-lo do papel. O presidente Lula, no entanto, ciente da importância do plano e do impacto que ele vai causar na atuação da União, dos estados e dos municípios em casos de desastres, deu a devida prioridade a essa importante ferramenta”, disse o ministro Waldez Góes, da Integração e Desenvolvimento Regional.
Para além do papel dos governos federal e estadual, assim como as medidas que devem ser tomadas em âmbito municipal, questões complexas como o enfrentamento da crise ambiental devem passar, necessariamente, pelos parlamentos, com destaque para o Congresso Nacional.
E neste aspecto, a luta não é fácil, considerando que a maioria dos deputados e senadores são alinhados com setores que querem mais destruir e lucrar do que preservar e prevenir, como é o caso da bancada do agronegócio e de determinados setores empresariais, além dos bolsonaristas negacionistas.
Segundo Observatório do Clima, “atualmente, no pior Congresso da história (e o mais bem-avaliado desde 2003, embora o total de avaliação positiva seja apenas de 22%) tramitam 25 projetos e três propostas de emenda à Constituição (PECs) que afetam direitos consagrados em temas como licenciamento ambiental – bastião da sociedade contra atividades econômicas potencialmente destrutivas –, grilagem, direitos indígenas, financiamento da política ambiental. Há ainda outros que flexibilizam o Código Florestal, legislações sobre recursos hídricos, mineração, oceano e zonas costeiras, sendo que alguns têm alta probabilidade de avanço imediato”.
À BBC Brasil, Marcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima, destacou que “deputados trabalham dia e noite para destruir a legislação ambiental do Brasil com afinco”. E completou: “A gente nunca teve um Congresso tão agressivo nesse esforço para desmontar a legislação ambiental no Brasil”.