China e Índia dominam o xadrez, esporte-símbolo da Guerra Fria
Quando Millôr Fernandes, sempre cáustico, chamou o xadrez de “jogo chinês que aumenta a capacidade de jogar xadrez”, um enxadrista o retrucou. Segundo ele, a origem desse esporte, na realidade, é indiana. Além disso, as regras e os padrões atuais só teriam surgido séculos depois no Ocidente. Millôr não perdoou: “Viu como só tem chato no xadrez?”.
Polêmicas (e deboches) à parte, Índia e China já não disputam apenas a condição de berço do jogo. Atualmente, os dois países despontam como as maiores potência do xadrez. No feminino, a hegemonia já é chinesa há mais de 30 anos, desde que Xie Jun venceu o Campeonato Mundial de 1991.
A era Jun durou uma década. Campeã de 1991 a 1996 e de 1999 a 2001, a grande jogadora chinesa abriu caminho para outras compatriotas suas que também alcançaram o título máximo do xadrez: Zhu Chen (2001-2004), Xu Yuhua (2006-2008), Hou Yifan (2010-2012, 2013-2015 e 2016-2017), Tan Zhongyi (2017-2018) e Ju Wenjun (desde 2018).
Em 2024, para sacramentar o domínio do país, duas chinesas – a atual campeã, Ju Wenjun, e a desafiante, Tan Zhongyi – estão na decisão do Campeonato Mundial. Portanto, ao menos até 2025, nenhuma nação fará sombra à China no xadrez feminino.
Entre os homens, a Índia parece ser a bola – ou a peça – da vez. Os indianos já tiveram um campeão mundial. Primeiro grande mestre na história do país, Viswanathan Anand venceu o campeonato da Fide (a Federação Internacional de Xadrez) entre 2000 e 2002 e de 2007 e 2013. Seu feito o transformou numa espécie de herói nacional – ele chegou a ser escolhido o “esportista indiano do milênio”.
Agora, a Índia tem a chance de voltar ao topo do xadrez – e a esperança está depositada nas mãos de um adolescente. Neste domingo (21), o grande mestre, Gukesh Dommaraju, de apenas 17 anos, se consagrou como o mais jovem enxadrista a conquistar o Torneio de Candidatos. Dos oito jogadores que se enfrentaram na competição, realizada em Toronto, no Canadá, Gukesh tinha apenas o sexto maior rating – mas surpreendeu pelo excepcional desempenho ao longo das rodadas.
O Torneio de Candidatos define o desafiante do campeão mundial. Neste ano, além de Gukesh, a Índia tinha mais dois representantes – Praggnanandhaa Rameshbabu, de 18 anos, e Vidit Gujrathi. Eles torcerão agora pelo “menino prodígio” da Índia, que, ainda em 2024, tentará tirar o título do chinês Ding Liren e se tornar o enxadrista mais novo a vencer o Campeonato Mundial da Fide.
O primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, não lhe poupou elogios. “A Índia está excecionalmente orgulhosa de Gukesh”, afirmou o premiê no X (ex-Twitter). “A notável conquista de Gukesh no Candidatos em Toronto mostra o seu extraordinário talento e dedicação. Seu excelente desempenho e sua jornada até ao topo inspiram milhões.”
A Índia talvez seja hoje o país que mais faça propaganda do xadrez como um símbolo nacional. Nada comparável, porém, aos tempos de Guerra Fria, quando Estados Unidos e União Soviética, arquirrivais ideológicos, transformaram o tabuleiro de xadrez em mais um palco de conflito. Os soviéticos, em especial, ostentavam os troféus de seus enxadristas como demonstração de uma suposta superioridade intelectual.
O Campeonato Mundial de Xadrez, iniciado em 1948, só teve campeões de origem soviética nos primeiros 44 anos. Por isso, a disputa do título de 1972 foi a mais midiática de todos os tempos. O genial norte-americano Bobby Fischer superou o soviético Boris Spassky e levou o troféu pela primeira (e única) vez para os Estados Unidos, transformando-se numa celebridade mundial.
A geração dos grandes mestres Anatoly Karpov e Gary Kasparov voltaria a trazer os soviéticos à ribalta. Mas a União Soviética logo caiu, e o uso político do xadrez, também. Sem guerra fria, seu esporte-símbolo perdeu destaque. Há quem acredite que a ótima série O Gambito da Rainha, de 2020, foi o marco inaugural de uma nova época de projeção do xadrez. Que essa tendência, animada por grandes mestres indianos e chineses, não sofra um xeque-mate!