Brasil tem 250 civis mortos para cada policial assassinado em serviço
Para cada policial morto em serviço no Brasil, 250 civis perdem a vida para a polícia. O número praticamente dobrou entre 2020, quando estava em 114, e 2022, sendo o maior da série histórica, segundo a terceira edição do Monitor do Uso Letal da Força na América Latina e no Caribe. “Isso é um sinal gravíssimo de que as polícias seguem abusando da força letal”, disse, ao Portal Vermelho, Dennis Pacheco, pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que conduziu o estudo.
O levantamento trabalhou com 12 indicadores relativos ao uso e ao abuso da força na região e verificou que enquanto 5.619 civis foram mortos por agentes da segurança pública em 2022, 22 policiais tiveram o mesmo destino durante o serviço.
Alguns estados historicamente concentram a maior letalidade policial, como Amapá (28,7%), Bahia (19,2%), Goiás (26,4%), Pará (18,1%), Rio de Janeiro (25,9%) e Sergipe (19,9%).
Outro dado que mostra a gravidade desse quadro é que no Brasil a taxa de civis mortos por policiais em serviço (2,77 civis mortos a cada 100 mil habitantes) é maior que a de países como a Colômbia (0,52), El Salvador (1,45) e Venezuela (2,6), segundo dados da imprensa em 2022. Nesse indicador, o Brasil fica atrás apenas da Jamaica (4,23) e Trinidad e Tobago (4,11).
Além disso, o Brasil supera todos os países analisados em taxa de civis mortos em relação ao número de agentes de segurança (11,28 civis mortos a cada mil policiais). E, no que diz respeito ao percentual de mortes cometidas por policiais em relação ao total de homicídios, o Brasil (11,8%) fica atrás apenas de El Salvador (15%).
Segundo o estudo, o Brasil contava, em 2021, com 86 forças policiais — as polícias militares, civis, federais, penitenciárias e a legislativa — com um efetivo de quase 646 mil agentes.
Razões da desproporção
A imensa desproporção entre esses dois lados demonstra o quão disfuncionais são a sociedade brasileira e boa parte de suas instituições e o quão permeadas estão por problemas históricos ainda não resolvidos, como os reflexos da escravidão e o decorrente racismo estrutural e a herança militarista deixada pelo regime ditatorial de 1964. Soma-se a isso o estímulo à violência policial e ao uso de armas de fogo que o país vivenciou desde a ascensão do bolsonarismo.
“Temos observado uma redução das mortes sofridas por policiais em serviço que não foi refletida na redução das mortes causadas por policiais. Essas seguem entre estabilização e crescimento”, analisa Dennis Pacheco.
Ele acrescenta que o alto número de civis mortos “torna impossível a gente aderir à narrativa policial padrão de que essas mortes foram causadas por confronto. Boa parte não poderia ter sido decorrente de confronto justamente pela desproporção em que civis e policiais têm sido mortos no Brasil. Essas mortes são causadas por abuso da força”.
Ao analisar a realidade política em que se deu esse aumento, o pesquisador aponta que os dados registram “um retrato da atividade policial nos últimos anos do governo Bolsonaro, marcado pela institucionalização do incentivo à letalidade policial, o que colaborou — e muito — para a consolidação desse cenário”.
Pacheco frisa, no entanto, que o ex-presidente e os governadores não são os únicos responsáveis por isso. “O Ministério Público é o órgão responsável por controlar a atividade policial. E o que ele tem feito?A resposta, infelizmente, é que muito pouco. Ele previne que os policiais sejam judicialmente processados porque arquiva os casos e eles não chegam à justiça, mesmo quando existem indícios fortíssimos de abuso da força”.
Um exemplo disso pode ser verificado no Rio de Janeiro. Conforme dados divulgados em 2023 pelo Fórum de Justiça — uma articulação de integrantes do sistema judiciário com membros da sociedade civil — 61% das mortes cometidas por policiais não são investigadas.
Segundo estudo feito pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública tendo como base dados de 2016 e divulgado em 2021, os MPs do Rio de de São Paulo pediram o arquivamento de 90% dos casos de mortes provocadas por policiais nas capitais dos dois estados.
Do ponto de vista histórico, Dennis Pacheco diz que “existe uma continuidade do autoritarismo que atravessou a redemocratização, justamente na medida em que a segurança pública não foi redemocratizada, não foi lançado sobre a segurança pública um olhar que contemple os direitos fundamentais e as perspectivas e princípios de proteção aos direitos humanos e civis, tais como os direitos à vida e à não discriminação”.
Ele lembra que no Brasil, “a segurança pública é perpassada por essa perspectiva militarista de que existem inimigos internos que devem ser combatidos, independentemente do nível de força que for preciso utilizar. E essa é uma lógica que é incompatível com a democracia, com a proteção dos direitos e com os princípios de necessidade, legalidade, proporcionalidade e escalonamento do uso da força que deveriam reger a atividade policial”.
Ele chama atenção, ainda, para o peso da herança colonialista nesse quadro geral. “As mortes causadas por policiais não acometem quaisquer grupos sociais. O perfil é muito bem definido e existe uma seletividade imensa quando a gente está falando de contra quem e em que medida os policiais vão usar e abusar da força”. Ainda de acordo com dados do FBSP, contidos no Anuário de Segurança Pública 2023, 83% dos mortos pela polícia em 2022 no Brasil eram negros.
Repactuação democrática
Para o pesquisador do FBSP, superar esse quadro de alta letalidade policial requer “uma repactuação de democratização do setor, que deveria ser um setor de política pública, mas que acaba sendo tratado como uma plataforma política para o grupo que é mais radical e que mais incentiva a letalidade”.
Neste sentido, é preciso fazer com que os órgãos e atores responsáveis pelo controle da atividade policial — como é o caso do MP — cumpram seu papel. Além disso, avalia, “existe a necessidade de implementação de políticas públicas que sejam focalizadas sobre os estados e, dentro desses estados, nas polícias. E é importante ressaltar que a gente está falando especialmente das polícias militares, que são as responsáveis pela imensa maioria dos casos de letalidade, de abuso da força”.
Para isso, é preciso que haja políticas centradas no território e nas corporações, e dentro das corporações, nos batalhões de mais alta letalidade.
Ele cita como exemplo um avanço obtido no estado de São Paulo, antes da gestão do bolsonarista Tarcísio de Freitas. “Quando São Paulo resolveu fazer essa transição por meio do programa Olho Vivo — que infelizmente foi sucateado e tem sido sabotado a partir de dentro, pela própria Secretaria de Segurança Pública e pelo governador — conseguiu reduzir significativamente a letalidade policial em um período extremamente curto de tempo”, salientou.
O programa, que incorporou câmeras aos uniformes policiais chegou, em 2022, a alcançar 62 dos 135 batalhões da PM (45,9% do total), segundo dados do FBSP. No período entre 2019, quando foi implantado, e 2022, o Fórum verificou uma queda de quase 63% nas mortes por intervenções de policiais militares em serviço.
Por fim, Pacheco aponta que “é preciso que exista vontade política, e para que essa vontade política surja, é preciso que exista pressão social e uma atuação antirracista da sociedade civil como um todo”.