Aos 40 anos das Diretas Já, as memórias de uma luta contínua pela democracia
A imagem que a ditadura quis esconder. Ato com 400 mil pessoas em 25 de janeiro de 1984, na Praça da Sé, São Paulo. Foto: CNTRV/Agência Brasil
Nivaldo, Jamil, Aurélio, Luciano e Jô eram lideranças destacadas em 1984, quando a luta pela aprovação da emenda das Diretas Já tornou-se prioritária e organizava toda a sociedade. A luta contra a carestia, contra a violência da ditadura, contra as mentiras dos militares, contra os salários de fome e o desemprego, convergia, agora, para um único palanque.
O sindicalista Nivaldo Santana, com 31 anos à época, lembra o contexto político e social que levou a sociedade brasileira a se unir em torno daqueles comícios gigantescos. O médico Jamil Murad, atendendo em hospitais públicos de São Paulo com seus 41 anos de idade, conta como os brasileiros de todos os níveis já estavam fartos da ditadura.
Em sua biografia, Aurélio Peres, que aos 45 anos era deputado, se equilibrava em meio aos corredores da Câmara dos Deputados, com colegas que não sabiam muito bem para onde ir. Aurélio tinha clareza e operou para defender a emenda, as mobilizações e não titubeou ao decidir pelo apoio a um candidato ao Colégio Eleitoral, após a derrota da emenda das Diretas.
Luciano Siqueira tinha 38 anos, antes de se tornar deputado, vereador e até vice-prefeito. Ao participar ativamente das mobilizações em Pernambuco, ele conta como aquele momento foi de profundo aprendizado para uma sociedade que estava desacostumada com os ares da democracia.
Do mesmo modo, a ex-deputada Jô Moraes, também com 38 anos, corria da polícia mineira em 1984, enquanto reunia mulheres para a luta pelas Diretas. Para ela, com a guerra cultural e ideológica que se enfrenta nas redes sociais, hoje é mais difícil lutar por aqueles ideias.
Aos fatos
Ainda em 1983, houve um comício pouco noticiado diante do estádio do Pacaembu, em São Paulo, no dia 27 de novembro, conforme cresciam as mobilizações em torno da Emenda Dante de Oliveira (PMDB-MT), que propunha o restabelecimento imediato das eleições diretas para presidente da República. Em 12 de janeiro, aconteceu o primeiro grande comício da campanha, em Curitiba, reunindo sessenta mil pessoas, segundo os organizadores.
O comício de São Paulo foi bem maior. As avaliações dão conta de 400 mil participantes, mesmo debaixo de duas horas de chuva ininterrupta. Estavam presentes personalidades do mundo político — Franco Montoro, Ulysses Guimarães, Luiz Inácio Lula da Silva e Leonel Brizola — e artístico —, Bruna Lombardi, Alceu Valença, Chico Buarque, Fernanda Montenegro, Ester Góes, Regina Duarte, Carlos Vereza, Jards Macalé, Fafá de Belém, Gilberto Gil e Moraes Moreira.
“A Bastilha, que é o símbolo da usurpação do povo, e que se chama Colégio Eleitoral, caiu, hoje, aqui. O povo, os 400 mil brasileiros que aqui se encontram tomaram os cárceres em cujos porões a ditadura aprisionou os títulos (eleitorais) de sessenta milhões de brasileiros”, disse Ulysses Guimarães.
O governo de João Figueiredo jogou pesado para desmobilizar o comício. As redes de televisão foram proibidas de transmitir o evento para fora da cidade de São Paulo. Só a Bandeirantes desafiou a ditadura e mostrou, ao vivo em rede nacional, trechos importantes do comício. Seu presidente, João Saad, foi intimidado por Figueiredo a comparecer em seu gabinete. Com o Decreto de concessão do canal da Bandeirantes em Brasília na mão, o ditador ameaçou cancelar o contrato e, com fúria, o transformou em papel picado.
O deputado Dante de Oliveira colheu as assinaturas em apoio à proposta em fevereiro de 1983, mas ninguém fazia a mais remota ideia de que ela decolasse com o impulso de uma gigantesca mobilização popular. Ela precisava de dois terços para ser aprovada. Havia ainda os degraus regimentais para a sua tramitação, um labirinto totalmente vigiado pelos governistas. Aprovar uma emenda constitucional contra o regime era praticamente impossível, como se confirmou.
Depois de virar realidade em abril de 1983, acabou enfiada em alguma gaveta e voltou a ver a luz somente em 1984, quando já estava na boca do povo. Ostentando a cor amarela como símbolo do movimento, os comícios, cada vez mais gigantes, tomaram conta do país.
No dia da votação da emenda, Brasília estava praticamente sitiada. No comando das medidas de emergência que vigorariam entre 20 e 30 de abril estava o truculento general Newton Cruz, comandante militar do Planalto. O Comitê Nacional pró-diretas havia programado para aquela data uma jornada de vigília cívica de acompanhamento das discussões e votação da emenda.
Contudo, o resultado da votação na Câmara dos Deputados frustrou todas as expectativas. Por falta de 22 votos, a emenda Dante de Oliveira foi rejeitada. A multidão que lotava as galerias do Congresso, entre lágrimas, deu-se as mãos e, erguendo-as, cantou o hino nacional.
Grandes comícios voltaram a ocorrer no país. Dali em diante, a discussão seria sobre como a oposição deveria se posicionar no Colégio Eleitoral. Em 19 de junho de 1984, nove governadores do PMDB e Leonel Brizola, do PDT, reuniram-se em São Paulo e indicaram Tancredo Neves como candidato da oposição à sucessão presidencial.
Havia uma fervura nos bastidores do governo, com a dissidência que se bandeou para a candidatura de Tancredo Neves. O ministro do Exército, Délio Jardim de Mattos, chegou a chamar de “traidores” os que não aceitavam a candidatura de Paulo Maluf.
Havia rumores de que o candidato da oposição poderia ser assassinado. No primeiro comício na cidade de Goiânia, terroristas da ditadura espalharam cartazes e picharam paredes de Goiânia associando Tancredo Neves ao PCB e ao PCdoB. Ocorreram prisões de agentes militares pilhados nessa tarefa em Brasília e Salvador.
Quando Tancredo Neves deixou o governo de Minas Gerais para assumir a candidatura, os partidos comunistas decidiram não levar seus símbolos no ato político para evitar exploração política. Contudo, duas bandeiras do PCdoB apareceram na manifestação; descobriu-se depois que foram levadas por membros da Polícia Federal.
Em 15 de janeiro de 1985, Tancredo Neves elegeu-se presidente da República, derrotando o candidato da ditadura militar, Paulo Maluf, no Colégio Eleitoral. Com as expectativas renovadas pelo regime batizado por Tancredo Neves de “Nova República”, o país passou a respirar novos ares. A morte de Tancredo antes da posse não arrefeceu as esperanças.
Para os trabalhadores, além da ampliação das liberdades o país precisava começar a varrer as marcas deixadas pelos anos de chumbo. A forma de se fazer isso seria a realização de uma Assembleia Constituinte, comandada pelo governo assumido por José Sarney, para gravar na Constituição os direitos de uma sociedade com um mínimo de democracia para o povo. Apesar da Nova República, as velhas oligarquias, a estrutura social do país fendida em dois extremos e a máquina estatal montada para garantir privilégios para poucos continuavam exibindo poder no novo regime.
Aurélio Peres: Uma vida na luta por eleições diretas
Aurélio Peres, ex-deputado federal pelo PMDB e militante comunista, foi uma figura proeminente nos turbulentos anos da década de 1980 no Brasil. Sua biografia, intitulada Aurélio Peres — Vida, Fé e Luta, escrita por Osvaldo Bertolino, oferece um olhar detalhado sobre aquele período histórico e suas reflexões sobre os eventos que moldaram a redemocratização.
Em 1981, o cenário político estava fortemente influenciado pelo “pacote de novembro”, uma minirreforma política, que buscava favorecer o partido do regime militar nas eleições vindouras. Aurélio, em resposta a essas manobras, defendeu a unidade das oposições em torno de um projeto comum de mudança radical na política econômica e na defesa das eleições de 1982 sem casuísmos.
Por meio do Bloco Popular, o PMDB aprovou a defesa de eleições diretas para presidente da República, e Aurélio Peres foi um dos responsáveis por instituir o “Movimento Teotônio Vilela pelas Eleições Diretas”, homenageando o senador falecido recentemente. Esse movimento suprapartidário tinha como objetivo coordenar nacionalmente a luta pelo pleito direto.
Aurélio relembra o início das manifestações em prol das eleições diretas, como o pequeno comício-relâmpago no Largo Treze de Maio, em 14 de janeiro de 1984. A mobilização ganhou força com a criação de comitês estaduais, municipais e zonais do Movimento Teotônio Vilela, espalhando a campanha por todo o país.
Aurélio Peres enfatizava a importância de envolver o movimento sindical na luta pelas diretas, destacando a iniciativa do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo. No entanto, ele reconhece que o apoio das bases sindicais ainda não era totalmente consolidado e defendia um maior engajamento da classe operária na causa das eleições diretas.
Enquanto a oposição tentava impulsionar a campanha das diretas, o governo militar contra-atacava com propaganda e manobras políticas. Aurélio denunciava a postura autoritária do regime, criticando a tentativa de trocar as eleições diretas por uma saída via Colégio Eleitoral.
O cume desse movimento histórico ocorreu nos comícios de 10 de abril de 1984, no Rio de Janeiro, e 16 de abril, em São Paulo, que reuniram milhões de manifestantes em apoio às eleições diretas. De lá, Aurélio expressou sua confiança na vitória da campanha e rejeitou qualquer acordo que comprometesse os princípios democráticos.
Após a derrota da emenda constitucional, Aurélio criticou esquerdistas que recusavam a disputa com um candidato progressista no Colégio Eleitoral, reforçando sua posição em defesa da democracia.
A vitória de Tancredo Neves nas eleições indiretas representou não apenas o fim de uma longa jornada de luta contra o regime, mas também um reconhecimento pessoal da dedicação de Aurélio Peres à causa democrática, como reconheceu a própria imprensa da época.
Nivaldo Santana: Um marco na história da democracia
Nivaldo Santana, secretário sindical nacional do PCdoB, mergulha nas lembranças vívidas naquele período marcante, ressaltando o contexto político e social que levou à mobilização histórica.
“A ditadura militar estava num processo progressivo de isolamento político e social. Houve grandes mobilizações de trabalhadores, greves, passeatas estudantis”, afirma.
As eleições diretas de 1982, que viram a vitória da oposição em 10 estados, incluindo São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, são destacadas por ele como fundamentais para criar as condições para o movimento maior.
Nivaldo narra os momentos marcantes das manifestações em São Paulo, onde multidões se reuniam em lugares emblemáticos como o Pacaembu, a Praça da Sé e o Vale do Anhangabaú, este último testemunhando a presença de mais de um milhão de pessoas. Ele enfatiza o apoio político e logístico dado pelo governador Franco Montoro, que abriu as catracas do metrô para facilitar a participação popular.
As Diretas Já, para o sindicalista, representaram um ponto de inflexão que culminou na derrota do regime militar e na abertura política. Mesmo com a derrota da emenda Dante de Oliveira no Congresso Nacional, Nivaldo destaca que a mobilização popular pavimentou o caminho para a eleição de Tancredo Neves e a posterior redemocratização do país.
O dirigente ressalta que o legado das Diretas Já foi além da redemocratização, inaugurando um novo ciclo político no Brasil. No entanto, ele reconhece os desafios econômicos enfrentados pelo país após a ditadura, destacando a necessidade de desenvolvimento econômico aliado à democracia.
“Depois de 40 anos da campanha das Diretas, a luta pela democracia deve continuar sendo uma bandeira prioritária, viabilizada pela união de amplas forças políticas e sociais”, afirma.
Jamil Murad: Memórias de um médico contra a ditadura
Jamil Murad, membro do PCdoB desde 1968 e destacado militante entre a população de São Paulo, abre as portas de suas memórias para compartilhar suas experiências e reflexões sobre os anos sombrios da ditadura militar no Brasil.
Desde o início da ditadura, Jamil foi testemunha ocular da violência do regime, que não hesitou em reprimir, torturar e matar aqueles que se opunham ao seu poder autoritário. Para ele, esse período foi marcado pela perda de liberdades individuais e pela submissão aos interesses estrangeiros.
Entretanto, ele ressalta que o povo brasileiro nunca se curvou diante dos generais. Da guerrilha da Araguaia à mobilização das Diretas Já, os brasileiros enfrentaram as adversidades mais severas para defender sua pátria e seus direitos.
Ao relembrar os eventos que culminaram nas Diretas Já, Jamil destaca a determinação popular em resistir à ditadura. Ele recorda os momentos-chave das manifestações, especialmente a grande mobilização no Vale do Anhangabaú, que reuniu mais de um milhão de pessoas em um clamor uníssono por democracia.
A construção do movimento das Diretas Já, segundo ele, foi uma estratégia inteligente e hábil, que uniu diversos setores da sociedade contra o regime militar.
Apesar da derrota das Diretas Já com a posterior eleição de Tancredo Neves pelo colégio eleitoral, o Brasil iniciou uma nova era política, como destaca Jamil, que se tornou um parlamentar querido dos paulistanos. Ele enfatiza a importância desse momento e sua contribuição para as conquistas subsequentes, incluindo as cinco eleições presidenciais vencidas por forças democráticas.
No entanto, Jamil adverte que os desafios persistem no Brasil contemporâneo. O país precisa de reformas estruturais profundas para alcançar seu verdadeiro potencial e se tornar uma nação próspera e justa para todos os seus cidadãos. Ele expressa sua convicção de que, assim como o rio que corre para o mar, a busca por um Brasil melhor e mais justo é inevitável e irrefreável.
Luciano Siqueira: 40 anos de lutas e aprendizados
Com 52 anos de militância no PCdoB, Luciano Siqueira compartilhou sua visão e experiência durante esses momentos seminais da história brasileira.
“Sinto-me privilegiado por ter vivenciado e participado ativamente da campanha das Diretas Já”, expressou. “A campanha das Diretas Já representou um momento crucial na luta pelo fim da ditadura militar.”
Rememorando os momentos marcantes da campanha em Pernambuco, Luciano destacou dois eventos particulares. O primeiro foi um grande encontro no ginásio de esportes, onde diversas delegações de todo o estado se reuniram em apoio à causa. O segundo foi uma manifestação histórica no largo da feira de Santa Mara, que se tornou uma das maiores da história do Recife até então.
“Mesmo que a emenda Dante de Oliveira não tenha sido votada, o movimento das Diretas Já teve um impacto profundo em todo o país”, explicou. “Esse movimento se transformou em um amplo apoio à candidatura de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral, o que culminou na vitória e nos passos iniciais da redemocratização que conhecemos.”
Para ele, a formação da consciência social avançada é um processo complexo, pois “o mesmo povo que foi às ruas pedir Diretas Já, é também um povo suscetível sob a pressão das condições objetivas adversas, a se confundir e fracionar sua consciência política”. Ele destacou que, apesar das idas e vindas ao longo dos últimos 40 anos, o período das Diretas Já representou um grande aprendizado para o povo brasileiro.
“É um processo complexo, sujeito a altos e baixos”, afirmou ele. “Mas acredito que é possível o povo brasileiro se libertar a si mesmo e melhorar seu padrão de vida material e espiritual, dando um passo adiante em direção à própria emancipação dos trabalhadores.”
Jô Moraes: A luta contínua pela democracia
Jô Moraes, revive com emoção e vivacidade sua participação na histórica campanha das Diretas Já em Minas Gerais. “Naquele ano de grandes lutas, eu já estava aqui em Belo Horizonte, na transição entre sair da anistia e atuar na vida política”, conta Jô Moraes. “A campanha das diretas em Minas teve uma importância muito grande, pois Tancredo Neves era governador do estado.”
Jô destaca o papel fundamental das mulheres na campanha em Minas Gerais. “Nós criamos o comitê feminino suprapartidário pelas diretas e tivemos uma atividade intensa. Fomos as mulheres que, em fevereiro, fomos para a Praça da Rodoviária fazer a primeira atividade de defesa das diretas”, lembra ela.
Ela descreve a mobilização das mulheres, que incentivavam umas às outras a se envolver na campanha, por meio de uma corrente que, se fosse quebrada, acabava com o Maluf governando o Brasil. “Foi tão forte a incorporação das mulheres nessa campanha que, quando a votação da emenda Dante de Oliveira foi derrotada, nós fizemos uma manifestação enterrando simbolicamente com um caixão todos os deputados que votaram contra as diretas”, relata Jô. A repressão policial fez com que a mulherada corresse para um parque com o caixão feito de caixa de geladeira. Ninguém foi presa, pois a polícia preferiu levar o caixão, as flores e faixas.
Sobre o legado das Diretas Já, a ex-deputada ressalta que o compromisso de garantir a democracia e a liberdade no país continua, embora os desafios sejam diferentes. “Hoje, lutar em defesa da liberdade e da democracia é muito mais difícil do que o período que vivemos na ditadura”, afirma. “Estamos na disputa de uma guerra cultural, que exige uma imensa capacidade de compreender, se aproximar do povo e enfrentar as estruturas novas da disputa que realizamos.”
Com informações de “Aurélio Peres — Vida, Fé e Luta“, escrita por Osvaldo Bertolino, pela Editoria Anita Garibaldi.
(por Cezar Xavier)