Reação à lei de igualdade salarial revela inconformidade do capital
Precisou de pouco tempo para o setor patronal questionar, na Justiça, a lei sancionada no ano passado que garante isonomia salarial entre homens e mulheres na mesma função. Com subterfúgios variados, diz não questionar o mérito, mas determinados aspectos da lei — o que, ao fim e ao cabo, cria novos obstáculos para a aplicação de regras que nada mais buscam do que a igualdade de gênero no mercado de trabalho, até hoje não alcançada.
Um desses questionamentos tramita no Supremo Tribunal Federal (STF). Trata-se da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7612, proposta pela Confederação Nacional da Indústria (CNI) e pela Confederação Nacional do Comércio, Bens, Serviços e Turismo (CNC).
Ao Portal Vermelho, a juíza titular da 4ª Vara do Trabalho de Porto Alegre, Valdete Souto Severo, explica que “a ADI revela a inconformidade de setores do grande capital com uma lei que, em larga medida, repete o que está na CLT e a Constituição de 1988”.
O ponto central da ação está no artigo 5º da Lei 14.611 — sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva em julho de 2023 —, que trata da publicação semestral de relatórios de transparência salarial e de critérios remuneratórios pelas empresas com 100 ou mais empregados, respeitando a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei 13.709/18).
Entre outros questionamentos, de acordo com a ADI, a lei desconsideraria “as hipóteses legítimas de diferenças salariais fundadas no princípio da proporcionalidade” para “reputar como ilícita, indistintamente, toda e qualquer diferença salarial que possa estar expressa nos relatórios de transparência salarial e de critérios remuneratórios – cuja publicação a lei impõe”.
Também argumenta que tal medida contrariaria o princípio da segurança jurídica, já que lançaria os empregadores numa “situação de ilicitude artificial, em posição de sujeição a sanções severas”.
A juíza Valdete Souto Severo aponta que a lei da igualdade salarial, na realidade, traz uma inovação que é justamente aquela contra a qual o segmento patronal está se opondo: “a exigência de transparência na prática salarial entre homens e mulheres e a previsão de divulgação de relatório periódico de transparência salarial, com a possibilidade de impor penalidades quando verificada a discriminação”. Ou seja, complementa, “as confederações atacam o que, nessa lei, pode realmente representar uma diferença em relação ao atual estado de coisas”.
A juíza destaca que “já é proibido discriminar salários, mas a realidade é que mulheres seguem recebendo menos que homens para a mesma função. Aliás, se forem mulheres negras recebem cerca de um quarto do que um homem branco recebe para a mesma atividade. Isso é trágico. A lei é uma tentativa de coibir essa prática, justamente através de tais relatórios e de uma fiscalização mais efetiva”.
De fato, os dados mais recentes confirmam a continuidade dessa injustificável desigualdade. O primeiro Relatório de Transparência Salarial, publicado pelos ministérios das Mulheres e do Trabalho e Emprego e resultante da exigência do envio de dados em atendimento à Lei 14.611, mostra que as mulheres recebem 19,4% a menos do que os homens. Em cargos de dirigentes e gerentes, a diferença chega a 25,2%.
Valdete conclui salientando que “o argumento de que existem diferenças de remuneração entre homens e mulheres que se justificam em razão de ‘perfeição técnica do trabalho’ diz muito sobre a estrutura patriarcal em que vivemos e é reveladora da urgência na correção das distorções que ainda ocorrem em razão de gênero, raça, idade etc.”.
Na semana passada, o ministro-relator Alexandre de Moraes decidiu submeter a ADI diretamente ao plenário. Além disso, pediu informações às presidências da República, da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, como forma de subsidiá-lo na análise do caso.
Também determinou que, após o prazo de dez dias para as informações, os autos devem ser encaminhados ao advogado-geral da União e ao procurador-geral da República, para que se manifestem em cinco dias. Segundo assinalou o ministro, seus pedidos foram feitos devido à “relevância da matéria constitucional suscitada e de seu especial significado para a ordem social e a segurança jurídica”.
No mesmo caminho das confederações, no começo deste mês as redes de drogaria São Paulo e Pacheco obtiveram da Justiça, via liminar, o direito de não fornecer ao governo informações trabalhistas e salariais dos funcionários para o Portal Emprega Brasil e de não publicarem relatório de transparência salarial produzido pelo MTE em seus sites e redes sociais.
Na concepção da rede Pacheco — que pertence ao mesmo grupo da São Paulo — a discussão envolvendo igualdade de gênero, pasmem, “tem ganhado contornos cada vez mais violentos na sociedade atual”. E, para fazer valer sua posição contrária à lei, argumentou não haver garantia de que as informações coletadas seriam mantidas em sigilo, ainda que a lei trate claramente dessa questão. Com isso, diz, a empresa poderia estar publicamente exposta.
Ações são inadmissíveis
Ao falar sobre a reação do setor patronal, a ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, declarou, durante lançamento do Relatório de Transparência Salarial: “Não é admissível, não é aceitável, não é tolerável que tenha ações na Justiça questionando a lei ou tópicos da lei. Essa tem que ser uma luta de todo o Brasil. Igualdade significa justiça, significa tirar as mulheres da situação de pobreza”.
Da mesma forma, o ministro do Trabalho e Emprego, Luiz Marinho, reagiu às investidas. “As empresas, na verdade, não querem transparência naquilo que elas fazem cotidianamente na regulação entre homens e mulheres. Por que será? Falam assim ‘ah, a proteção de dados’. Está garantida. ‘Ah, o relatório vai expor’, está garantida a não exposição. Tudo que eles levantaram de problemas, nós atendemos justamente para para não haver estresse nem nenhum problema que levasse à judicialização”, afirmou.
Além disso, Marinho chamou atenção para “a necessidade da responsabilidade sensível no que diz respeito à importância da mulher na economia brasileira. Estamos falando aqui de mais da metade da população ser tratada desse jeito. É isso que dedicamos no mês da mulher, uma ação de inconstitucionalidade por parte das confederações buscando esconder o que as empresas praticam em relação ao salário de homens e mulheres?”. E concluiu: “Não há explicação lógica para essa resistência”.
As principais centrais sindicais do país também reagiram. Em nota, CTB, CUT, Força Sindical, UGT, NCST e CSB defenderam que as confederações retirem a ação e afirmaram que “as entidades patronais, que representam empresas que frequentemente fazem propaganda de como apoiam a igualdade e o respeito às mulheres, argumentaram na ação que a lei desconsidera casos em que a diferença salarial é, sim, justificada”.
A nota prossegue dizendo que “levando-se em consideração que a Lei da Igualdade Salarial deixa claro que os salários devem ser iguais para pessoas que desempenham a mesma função e cumprem a mesma carga horária, fica claro o absurdo do argumento, uma vez que nada justificaria tal diferença a não ser, justamente, a questão de gênero”.