Caminhões com alimentos e outros mantimentos aguardam autorização de Israel para entrar em Gaza | Foto: Reprodução

Israel “usa a fome como arma de guerra”, afirmou o chefe da diplomacia da União Europeia (UE), Josep Borrell.

“Essa fome não é um desastre natural. Não é uma falha. Não é um terremoto. É inteiramente feita pelo homem”, disse Borrell, apontando que, enquanto de um lado da fronteira há comida acumulada em estoques há meses e caminhões à espera, do outro lado há “pessoas morrendo de inanição.”

Em suma, a denúncia trazida pela África do Sul à Corte Internacional de Justiça da ONU, contra o genocídio em Gaza, agora começa a ser percebida sob outra faceta, a morte em massa pela fome fabricada.

A declaração de Borrell – que revela o isolamento do regime Netanyahu até mesmo entre seus mais tradicionais esteios e a crescente percepção de Israel como ‘Estado pária’ – foi feita por ele na segunda-feira (18), em uma conferência em Bruxelas sobre ajuda humanitária.

“Em Gaza, não estamos mais à beira da fome, estamos em um estado de fome, afetando milhares”, sublinhou o chanceler europeu. “Isso é inaceitável. A fome é usada como arma de guerra.”

“Por quem? Ousamos dizer por quem. Aquela que impede a entrada de apoio humanitário em Gaza”, disse, acrescentando que “Israel está provocando fome”.

“Antes da guerra, Gaza era a maior prisão ao ar livre. Hoje é o maior cemitério ao ar livre para dezenas de milhares de pessoas, mas também para muitos dos princípios mais importantes do direito humanitário”.

Ainda que tardia, a acusação de Borrel converge com a divulgação de um relatório da ONU que identificou fome em pelo menos duas das cinco províncias de Gaza, no norte do enclave, de acordo com a Classificação Integrada de Fase de Segurança Alimentar (IPC), criada em 2004.

“De acordo com o cenário mais provável, tanto o norte de Gaza quanto as províncias de Gaza estão classificados na Fase 5 (fome) do IPC com evidências razoáveis, com 70% (cerca de 210.000 pessoas) da população na Fase 5 (catástrofe) do IPC”, disse a iniciativa.

Ainda segundo o IPC, toda a população de 2,2 milhões de pessoas de Gaza enfrenta agora altos níveis de “insegurança alimentar aguda”.

A fome nas províncias do norte de Gaza agora deve se instalar entre meados de março e maio, segundo o IPC, que anteriormente só classificara duas outras crises humanitárias como fome: uma na Somália, que matou 490.000 pessoas em 2011, e outra no Sudão do Sul, que matou 80.000 pessoas em 2017.

O IPC usa a classificação quando pelo menos uma das três condições foi observada: pelo menos 20% das famílias têm extrema falta de alimentos; pelo menos 30% das crianças sofrem de desnutrição aguda; e pelo menos dois adultos ou quatro crianças para cada 10 mil pessoas morrem diariamente de fome ou de doenças ligadas à desnutrição.

Em suma, é inadiável um cessar-fogo e a entrada, sem travas, da ajuda humanitária – alimentos, remédios, água, combustível.

Segundo o órgão, no norte de Gaza, uma em cada três crianças sofre de subnutrição. Um em cada dois habitantes da Faixa de Gaza, ou mais de 1,1 milhões de habitantes de Gaza, vive uma situação alimentar catastrófica.

Este é “o número mais elevado alguma vez registrado”, advertiu a ONU, com base no relatório do IPC de 18 de março. “Os residentes de Gaza estão morrendo de fome”, disse a diretora executiva do Programa Alimentar Mundial (PAM), Cindy McCain.

Jens Laerke, porta-voz do Escritório das Nações Unidas para a Coordenação de Assuntos Humanitários (OCHA), disse em Genebra que a agência teme que, sem ação, “você esteja vendo mais de 200 pessoas morrendo de fome por dia”.

Nas últimas semanas, pelo menos 27 crianças em Gaza morreram de desnutrição, de acordo com as autoridades locais, em meio a ataques de Israel a civis que buscavam ajuda humanitária e ao bloqueio das entregas.

Segundo testemunho do Dr. Hussam Abu Safiya, chefe do departamento pediátrico do Hospital Kamal Adwan, no norte de Gaza, “25 a 30 crianças são internadas diariamente, sendo que metade delas sofre de desidratação e desnutrição. Uma criança, de dois meses, morreu hoje por causa de desidratação e desnutrição. Outras crianças estão na mesma trajetória”.

A BANALIZAÇÃO DA FOME E BLOQUEIOS

Como expôs Borrell, trata-se de uma fome intencionalmente organizada, em que o bloqueio da entrega humanitária é levado a efeito com aquela precisão e banalidade com que Eichman encaminhava suas vítimas para a “solução final”.

A ONU e outras entidades de ajuda humanitária planejaram 61 missões ao norte de Gaza em Janeiro. As IDF permitiram nove delas. Das 24 missões planejadas para fevereiro, a IDF facilitou seis delas.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) tentou levar mais ajuda médica ao norte de Gaza. No entanto, apenas três das 16 missões realizadas pela entidade tiveram acesso liberado pelas Forças de Defesa de Israel (IDF) em janeiro.

Em fevereiro, nenhuma das operações conseguiu a liberação para levar ajuda. Quando a OMS finalmente chegou ao norte de Gaza, no início de março, a equipe descobriu que 10 crianças tinham morrido por “falta de comida” num hospital.

Além do bloqueio, outros “procedimentos” não faltam, como o bombardeio de um comboio de alimentos da ONU enquanto aguardava a liberação perto de um posto de controle, ou o “massacre da farinha”, com as tropas de ocupação disparando contra uma multidão de famintos à chegada de um comboio de ajuda, e matando mais de uma centena e ferindo quase 800.

ISRAEL BARRA LAZZARINI

Nesse quadro, Israel negou ao chefe da agência da ONU para os Refugiados Palestinos UNRWA, Philippe Lazzarini, a entrada em Gaza.

“No dia em que são divulgados novos dados sobre a fome em #GAZA, as autoridades israelenses negam minha entrada em Gaza”, reagiu Lazzarini no X, acrescentando que sua visita tinha o objetivo de melhorar as operações humanitárias.

“Essa fome provocada pelo homem sob os nossos olhos é uma mancha em nossa humanidade coletiva”.

Ele instou a uma “corrida contra o relógio” para reverter a propagação da fome e evitar a carestia. Com vontade política, Gaza poderia ser “inundada” com alimentos por meio das passagens terrestres, acrescentou.

Ao lado de Lazzarini, o chanceler egípcio, Sameh Shoukry, considerou a recusa israelense de “atitude sem precedentes”.

“BLOQUEIO DA AJUDA É CRIME DE GUERRA”

“A extensão das contínuas restrições de Israel à entrada de ajuda em Gaza, juntamente com a maneira como continua a conduzir as hostilidades, pode equivaler ao uso da fome como método de guerra, o que é um crime de guerra”, disse o Alto Comissário da ONU para os Direitos Humanos, Volker Turk.

“Israel, como potência ocupante, tem a obrigação de garantir o fornecimento de alimentos e cuidados médicos à população proporcionais às suas necessidades e facilitar o trabalho das organizações humanitárias para prestar essa assistência”, disse Turk em um comunicado divulgado por seu porta-voz.

Turk disse que a crise foi “feita pelo homem” e “totalmente evitável”. “Todos, especialmente aqueles com influência, devem insistir que Israel aja para facilitar a entrada e distribuição desimpedida da assistência humanitária necessária e bens comerciais para acabar com a fome e evitar todo o risco de fome”, disse ele.

“É preciso restabelecer totalmente os serviços essenciais, incluindo o fornecimento de alimentos, água, eletricidade e combustível.”

Fonte: Papiro