Corte de Direitos Humanos pode condenar Brasil por morte de sem-terra em 2000
Está marcada para esta quinta-feira (14) a divulgação da sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos contra o Estado brasileiro, relativa à ação da Polícia Militar do Paraná durante marcha pela reforma agrária em 2000, na rodovia BR-227, em Campo Largo, que resultou no assassinato do camponês Antonio Tavares e deixou 185 integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) feridos. O julgamento trata da omissão e da não responsabilização dos envolvidos por parte da Justiça brasileira.
O episódio é considerado pelo MST como um dos mais emblemáticos de violência e criminalização da luta pela terra. Após os ataques, ocorridos no dia 2 de maio de 2000 — sob o governo de Jaime Lerner —, foi instaurado Inquérito Policial Militar para investigar a atuação dos agentes de segurança pública envolvidos na violenta ação.
Poucos meses depois, o Ministério Público Militar justificou a atitude do policial Joel de Lima Santa Ana, isentando-o de responsabilidade, e emitiu um parecer requerendo o arquivamento dos autos. Logo em seguida, o juiz militar determinou o arquivamento do caso, acolhendo o argumento de que os agentes agiram em consonância com “estrito cumprimento do dever legal”.
Em paralelo ao que acontecia na justiça militar, o Ministério Público Estadual, entendendo que se tratava de homicídio doloso, ofereceu denúncia contra o policial. No entanto, o Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, através de habeas corpus impetrado pelo réu, encerrou o processo criminal com o argumento de que o caso já havia sido arquivado pela Justiça Militar.
A Procuradoria de Justiça (MP/PR) não recorreu dessa decisão. Com isso, os inquéritos de apuração dos responsáveis pelo assassinato de Antonio Tavares foram arquivados em todas as instâncias e o policial foi absolvido. Já as lesões corporais às 185 pessoas que participavam da marcha jamais foram objeto de investigação pelas autoridades locais.
As violações foram denunciadas à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) em 2004. Em seu relatório de mérito, proferido em 2020, a CIDH apontou que o Estado brasileiro não apresentou explicação que lhe permitisse considerar que a morte de Antonio Tavares resultou do uso legítimo da força. Pelo contrário, a Comissão ressaltou que, diferentemente do que o Estado argumentou, o tiro que causou a morte de Tavares partiu de um policial militar e que o referido agente não agiu em legítima defesa, mas sim para assustar os manifestantes, e que o tiro foi disparado quando a vítima estava desarmada.
“A justiça foi negada pelo Estado brasileiro e foi preciso acionar um organismo internacional. Temos uma expectativa positiva de que a Corte finalmente faça justiça ao caso, reconhecendo a violência causada pelo Estado brasileiro — personalizado na figura política da época, o governador Jaime Lerner — e o seu aparato de segurança. Foi uma ação extremamente violenta, desleal e desumana contra camponeses que estavam se deslocando para Curitiba, um direito assegurado pela Constituição, para reivindicar a reforma agrária”, disse, ao Portal Vermelho, Roberto Baggio, dirigente do MST.
Mesmo tardando quase 25 anos, Baggio espera que finalmente a Justiça seja feita, inclusive do ponto de vista da indenização à família de Tavares. Na época do assassinato, o trabalhador rural era casado e tinha cinco filhos. Ele era assentado da reforma agrária no município de Candói e fazia parte do Sindicato dos Trabalhadores Rurais da cidade.
Além das medidas relativas à punição e justiça sobre o caso, espera-se que a sentença se desdobre em outras ações de memória, verdade e combate à violência no campo. As organizações representantes das vítimas no caso também pediram à Corte que determine a elaboração e execução, pelo Estado brasileiro, de um plano nacional de reforma agrária, com recomposição orçamentária e destinação prioritária de terras públicas.
Também foi solicitado que a CIDH determine ao Estado brasileiro a elaboração de um plano nacional de combate à violência no campo, com garantia de ampla participação da sociedade civil organizada, a rejeição a qualquer proposta de alteração da Lei nº 13.260/2016, conhecida como “Lei Antiterrorismo”, e o compromisso do país de alteração da cultura institucional autoritária e violenta ainda existente nas forças policiais, por meio de um plano de ação compatível com legislações internacionais sobre o tema.
Outro pedido se refere à proteção ao monumento a Antonio Tavares, projetado pelo arquiteto Oscar Niemeyer e que representa a memória coletiva da luta pela reforma agrária e da intensa violência do Estado brasileiro contra os sem-terra. A obra foi erguida na BR-277, nas proximidades do local onde ocorreu o episódio.
Após decisão liminar de caráter inédito da Corte, em 2021, foi determinada a proteção ao monumento. Mais tarde, a obra foi reconhecida como patrimônio municipal histórico-cultural pela prefeitura de Campo Largo (PR).
“A gente espera que, com essa decisão, cesse esse método de violência constante promovido pelos aparatos de segurança do Estado e seja combatida a criminalização dos movimentos sociais. Essa forma de agir, com prisões, assassinatos, ataques de madrugada e cercos de extrema violência, devem ser banidos do modus operandi dos aparatos de segurança e dos governantes. Também esperamos que a sentença abra o caminho para que a reforma agrária seja finalmente pautada, assim como a garantia de políticas públicas para os camponeses”, argumenta Baggio.
Outros episódios na CIDH
O caso Antonio Tavares é o 13º julgado pela Corte Interamericana contra o Brasil e, desse total, é o terceiro envolvendo violações contra trabalhadores rurais sem-terra. Entre eles estão o assassinato do agricultor Sétimo Garibaldi, em 1998, durante o despejo ilegal de um acampamento do MST, em Querência do Norte (PR) — em 2009, a Corte considerou o Brasil culpado pela não responsabilização dos envolvidos no crime.
O Massacre de Eldorado dos Carajás, ocorrido em 1996 no Pará e que resultou no assassinato de 19 trabalhadores rurais e dezenas de feridos, é outro caso emblemático de violência contra sem-terras e que também foi levado à esfera internacional em razão da impunidade. O caso foi admitido pela Comissão Interamericana em 2003 e passou muitos anos em negociação para uma solução amistosa, que acabou sendo infrutífera. Atualmente, o caso aguarda análise de mérito pela Comissão.
Outros casos como esses encontram-se em tramitação perante a Corte Interamericana: o assassinato de Manoel Luiz em 1997 e o desaparecimento forçado de Almir Muniz em 2002.
Com informações do MST
Edição: Priscila Lobregatte