Cheia de expectativas, Argentina começa março sem anúncios, mas rumo à recessão
Pobreza deve alcançar 60% dos argentinos, ainda em março de 2024, levando milhares para as ruas e a fome.
O aumento da pobreza na Argentina está deixando uma marca indelével na sociedade, com consequências para milhões de pessoas em todo o país. Embora a impaciência argentina tivesse enormes expectativas para março, após tumultuadas negociações entre o governo, o Congresso, o FMI e as províncias, ouve-se apenas grilos nos jardins da Casa Rosada. Nenhum anúncio novo, nenhuma medida concreta. Enquanto isso, a recessão se apressa e a fome não espera.
De acordo com os dados recentes do Observatório da Dívida Social da Universidade Católica Argentina (UCA), a taxa de pobreza atingiu seu ponto mais alto em anos, subindo de 49,5% para 57,4% em apenas alguns meses. Essa rápida escalada na pobreza reflete uma série de fatores interligados que estão corroendo a estabilidade econômica e social do país.
Uma das principais causas desse aumento na pobreza é o desemprego e o endividamento. Muitas famílias argentinas viram-se de repente sem fonte de renda devido à perda de emprego, enquanto outras lutam para pagar dívidas acumuladas com juros exorbitantes. Essa combinação de falta de recursos financeiros e pressão econômica tornou-se insustentável para muitos, levando-os a recorrer a assistência alimentar básica para sobreviver.
A crise habitacional também desempenha um papel significativo na crescente taxa de pobreza. Desalojados de seus lares, famílias agora enfrentam a realidade das ruas, dependendo de doações para alimentação e abrigo. A falta de moradia adequada não apenas expõe essas famílias a condições extremas, mas também aumenta sua vulnerabilidade à violência e ao preconceito social.
Recessão à vista
O economista e cientista político argentino, Eduardo Crespo, professor da UFRJ, compartilhou sua análise sobre a situação econômica e social da Argentina em uma entrevista. Ele mencionou o fato do presidente Javier Milei estar apoiando-se num brutal ajuste fiscal, como solução, enquanto indispõe de apoio nos setores da elite política e econômica do país. Segundo ele, o fundo do poço da inflação não pode ter um alçapão, ou o governo não resistirá à instabilidade política.
No início de janeiro, o sociólogo dizia de sua preocupação com a impaciência característica do argentino, mencionando o mês de março como um alerta amarelo para a popularidade de Milei. “A situação econômica do país está piorando, e qualquer desvalorização adicional, especialmente prevista para março, pode resultar em uma queda dramática na popularidade do político”, disse ele, dois meses atrás.
Crespo reconhece que há um aumento da pobreza no país, mas sugere cautela na interpretação dos números, argumentando que a definição de pobreza na Argentina pode ser mais estrita do que em outros países da região. O mesmo ele diz da questão da segurança, que, embora tenha piorado, está longe dos índices dos vizinhos.
“As estatísticas da Argentina são meio ruins, especialmente em relação à pobreza, porque de fato não havia grandes problemas de emprego”, diz ele, mencionando os baixos índices de desemprego, na casa dos 6% e, provavelmente, aumentando gradualmente no governo Milei. Ele destaca a subestimação dos dados de produção na Argentina e aponta a falta de precisão nas estatísticas, especialmente em relação à pobreza.
No entanto, ele ressalta que nos últimos anos tem observado um aumento no número de pessoas vivendo nas ruas de Buenos Aires, embora ele não considere esse o tema central ao discutir os problemas enfrentados pelo país.
“O principal desafio da Argentina é a grave instabilidade macroeconômica, caracterizada pela saída de capitais e pela falta de uma moeda estável. Embora a taxa de desemprego estivesse em torno de 6% antes do governo de Milei, agora está aumentando devido à recessão econômica e à crescente informalidade no mercado de trabalho”, explica.
Embora reconheça a importância do combate à pobreza, Crespo não acredita que seja o problema central enfrentado pela Argentina. Ele destaca a alta inflação e a falta de reservas como os principais desafios econômicos do país, além da atual instabilidade política. “Para restabelecer a moeda, ia ter algum elemento de ajuste com qualquer governo, mais para a esquerda, mais para a direita”, pondera o economista.
Crespo também expressa ceticismo em relação à capacidade do governo de Milei de implementar com sucesso suas políticas econômicas, dadas as condições políticas e econômicas atuais. “Com as medidas de Milei, a pobreza aumenta, porque de fato a Argentina este ano vai ter uma recessão importante, com estimativa em torno de queda de 4% do PIB. Mas isso ia acontecer com qualquer governo, porque de fato é imprescindível uma estabilização, e não acho que Milei vai ser bem sucedido nisso, pois não estou vendo condições, nem políticas nem econômicas, para o sucesso”, avalia.
Portanto, a análise de Crespo oferece uma perspectiva abrangente sobre os desafios enfrentados pela Argentina, destacando a complexidade da situação econômica e social do país e as dificuldades em encontrar soluções eficazes para os problemas existentes.
Entre o confronto e a aliança
Crespo explicou que o governo enfrenta desafios significativos, especialmente após o fracasso da Lei Ómnibus no Congresso. Ele observou que embora Milei tenha enfrentado resistência até mesmo de setores que poderiam ser aliados, como o partido de Macri, o presidente está tentando abrir portas para negociações com diversos setores políticos. Crespo enfatizou que Milei precisa construir alianças e negociar para governar efetivamente, já que enfrenta dificuldades em obter apoio no Congresso e na justiça.
“Ele não tem equipe, não tem aliados no Congresso, não controla a justiça. Mas ainda tem uma base de apoio popular, mais pela rejeição aos outros, do que pelos méritos dele”, comenta o analista.
No entanto, Crespo alertou que se Milei continuar confrontando todos os setores políticos sem buscar diálogo e acordos, ele corre o risco de enfrentar uma impopularidade crescente e até mesmo um processo de impeachment. Ele destacou a importância de Milei estabilizar o cenário político e buscar colaboração com governadores e legisladores para evitar uma crise mais profunda.
Em meio à necessidade de garantir estabilidade e governabilidade no país, Milei repete a receita de Bolsonaro e da extrema direita pelo mundo, de atacar primeiro e depois assoprar. “Ele briga com deputados e governadores, atirando para qualquer lado, porque não é uma briga apenas contra o kirchnerismo, contra o peronismo, é mais até uma briga contra setores que você identificaria como aliados dele”, observa Crespo.
A insuficiência do ajuste fiscal
“Ele está fazendo um ajuste muito forte”, observou Crespo. “Se você consegue mesmo parar a inflação com um ajuste fiscal, e aí eu sou muito pessimista, você precisa muito mais de um ajuste fiscal para estabilizar.”
Crespo expressou sua preocupação com a capacidade do governo de estabilizar a inflação, enfatizando que se a inflação não for controlada, a situação econômica continuará a se deteriorar. “A gente chegou ao fundo do poço e parou aí. Estamos numa situação ruim, mas parou, entende? Agora, se ele não consegue estabilizar, efetivamente a situação vai ser…”, diz Crespo, sem completar. Ele reconheceu que o governo conseguiu fazer algumas reservas, mas ressaltou que isso não foi alcançado apenas por meio de ajustes fiscais, mas também pela postergação de pagamentos.
Sobre a possibilidade de dolarização da economia argentina, Crespo desmistificou a ideia, sugerindo que tal medida seria apenas uma cortina de fumaça se o governo não conseguisse estabilizar a situação econômica. “A situação econômica não passa de uma cortina de fumaça”, afirmou Crespo. “Essas medidas que eles anunciam sem conseguir estabilizar.”
Crespo também abordou a questão do apoio político ao governo de Milei, destacando a falta de pontes com setores importantes da política argentina. Ele enfatizou a necessidade de o governo buscar acordos políticos amplos para evitar uma crise ainda maior e ser derrubado do poder.
Crespo sugeriu que o governo de Milei precisa adotar medidas mais abrangentes que vão além do ajuste fiscal, incluindo iniciativas para impulsionar a produção e atrair investimentos. Ele destacou a importância de buscar consensos em setores produtivos e de promover discussões sobre políticas que possam impulsionar o crescimento econômico de longo prazo.
Em maio, Milei chamou os governadores para um suposto acordo na província de Córdoba, em que ele propõe algumas medidas para o setor produtivo, por exemplo, embora não estejam relacionadas à indústria. “Eu diria que até pode ter algum consenso de amplos setores. Na Argentina, não houve um forte apoio do governo à exploração de recursos naturais, por exemplo, algo que pode ocorrer agora”.
Política externa errática
A política externa argentina emerge como um ponto de preocupação significativo, na opinião de Crespo. Ele destacou as dificuldades criadas pelo governo de Milei em relação ao Mercosul e aos BRICS, grupos que poderiam potencialmente ajudar a Argentina.
Ele expressou preocupação com a abordagem ideológica da política externa argentina, particularmente em relação à ministra de Relações Exteriores, que descreveu como uma ultradireitista “que acredita que o mundo funciona de um jeito completamente estranho”. Crespo observou que a abordagem ideológica do governo tem gerado problemas diplomáticos, como a controvérsia em torno da tentativa de convocar autoridades de Taiwan e as relações tensas com a China. “A ministra tem que dar marcha ré em muita coisa que faz e diz”.
Além disso, Crespo mencionou a ausência de apoio internacional significativo para a Argentina, citando a falta de participação do ex-presidente brasileiro Lula na posse do presidente argentino e a falta de envolvimento do governo argentino com os BRICS. “Se o Trump ganhar nos Estados Unidos, de repente, até poderia ter algum tipo de sustento. Mas, por enquanto, é complicado”.
Ele descreveu a política externa argentina como carente de direção clara e eficaz, o que tem impactado negativamente as relações internacionais do país. “Ele fez uma viagem a Israel, por exemplo, e ficou pregando no Muro das Lamentações, sem muita clareza para onde vai”, lembrou. Mas, segundo ele, no ambiente sensacionalista das redes sociais repercutiu bem o discurso feito em Davos. “O mundo vê nele um personagem meio pitoresco, uma figura sem direção. Não há clareza, não há uma equipe aqui. É mais um sinal da crise da política do que uma política propriamente”.
Quando questionado sobre expectativas para a economia argentina no curto prazo, Crespo expressou pessimismo, observando que não há grandes anúncios ou sinais de melhoria iminente. Ele destacou a falta de clareza e liderança na condução das políticas econômicas do governo, sugerindo que a atual administração enfrenta desafios significativos para lidar com a recessão econômica e o aumento da pobreza.
“Muita gente achava que, no primeiro de março, ia anunciar alguma coisa surpreendente, mas isso não houve. Isso é um mau sinal. Como ele conduz o curso do governo de forma muito agressiva, deu alguma sensação de fraqueza na convocação do acordo com as províncias”, avalia.
Uma fila de espera em um restaurante popular do sul de Buenos Aires.
As pessoas nas estatísticas
No coração de Buenos Aires, a realidade dolorosa da pobreza atinge cada vez mais famílias argentinas. Em meio às estatísticas estão casos concretos de famílias de classe média, que nunca imaginaram que um dia teriam que depender de refeições distribuídas por organizações não governamentais. São pessoas que vivem o preconceito de serem mal vistas por morarem na rua, pela primeira vez, e se sentem vivendo o maior pesadelo de suas vidas.
Assim, pela primeira vez, essas pessoas veem-se obrigadas a enfrentar as filas em restaurantes populares pela cidade em busca de alimento. Pessoas que foram despejadas de suas casas em Buenos Aires, agora lutam para sobreviver nas ruas, dependendo de doações para alimentação básica.
A Praça de Maio tornou-se um local de busca por ajuda. Com a economia instável e os programas sociais incapazes de acompanhar a inflação, a pobreza se tornou uma realidade cada vez mais presente na vida dos argentinos. Na praça mais famosa de Buenos Aires, ovos, sanduíches e uma xícara de sopa são uma dádiva para aqueles que enfrentam a fome diária.
A situação é agravada pela redução dos recursos destinados aos programas de assistência alimentar. O governo, liderado pelo presidente Javier Milei, está revisando os processos de distribuição de alimentos, o que resultou em cortes drásticos nos refeitórios populares. Ele acusa os restaurantes de serem geridos pela oposição e procura um meio de fornecer os alimentos “sem intermediários”.
No início de fevereiro, centenas de pessoas fizeram cerca de 30 quarteirões de fila, em Buenos Aires, depois que a ministra argentina do Capital Humano, Sandra Pettovello, disse na semana anterior que receberia “um por um os que têm fome” para tentar aliviar protestos. Claro que ela não recebeu ninguém, e a fila se converteu em um protesto contra a redução da assistência alimentar aos restaurantes comunitários.
Enquanto o governo e a oposição trocam acusações sobre a responsabilidade pela crise, a realidade nas ruas é desoladora. Enquanto alguns culpam políticas econômicas anteriores, outros apontam para medidas recentes do governo como causadoras do problema. A luta diária pela sobrevivência tornou-se uma batalha humilhante para muitas famílias argentinas. Profissionais qualificados catam latas nas ruas para vender e conseguir comprar comida, enfrentando a pobreza pela primeira vez.
(por Cezar Xavier)