O bombardeio a Rafah já começou | Foto: AFP

O anúncio, pelo governo de Netanyahu, na sexta-feira (15) de que estão aprovados os “planos” para invasão de Rafah, a cidade do sul da Faixa de Gaza para onde 1,5 milhão de civis palestinos foram tangidos pelas bombas israelenses, está multiplicando na comunidade internacional os chamados a detê-lo sem demora, alcançar um cessar-fogo e fazer a ajuda humanitária chegar aos famintos.

Netanyahu também expôs o ‘plano’ para minimizar o número de mortes civis em Rafah, depois da exigência de Biden, neste sentido: colocar 1,5 milhão de palestinos em campos de concentração, prometendo que neles haver água e comida.

Ocorre que essa promessa de sobrevida parte do comandante do extermínio em curso que está, inclusive, entre os mais notórios sustentáculos dos 57 anos de inequívoca ocupação de territórios palestinos e, mais recentemente, da barbárie desencadeada contra a população civil em Gaza, que já resultou em mais de 100 mil mortos e feridos e 23 milhões de toneladas métricas de escombros, resultantes da destruição de 400 mil casas, hospitais, mesquitas, igrejas e escolas.

O repúdio à invasão de Rafah já havia sido manifestado pelo secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, bem como pelo governo brasileiro, a África do Sul e ainda por numerosas entidades que convocam manifestações por todo o mundo, muitas delas com participação ampla de judeus e árabes.

“Temos testemunhado, mês após mês, matança e destruição de civis a um nível sem precedentes em todos os meus anos como secretário-geral. Entretanto, a ajuda vital aos palestinos em Gaza está chegando a conta-gotas — se é que chega sequer”, disse Guterres em sua mensagem pelo início do mês sagrado do Ramadan.

“O direito humanitário internacional está esfarrapado”, ele alertou, acrescentando que um ataque israelense a Rafah poderia “mergulhar o povo de Gaza num círculo de inferno ainda mais profundo”.

Neste domingo, o ministro das Relações Exteriores do Brasil, Mauro Vieira, em visita a Mahmoud Abbas na Palestina, reiterou o apoio brasileiro ao cessar-fogo imediato em Gaza e sua denúncia do genocídio sendo ali perpetrado pelas tropas israelenses.

A Vieira, Abbas enfatizou que “o assunto urgente e prioritário para nós é evitar que as forças de ocupação israelenses invadam a cidade de Rafah, para onde mais de 1,5 milhão de palestinos foram deslocados, o que causará uma catástrofe humanitária”.

“PÁRIA GLOBAL” DEIXA SCHUMER SEM DORMIR

Mesmo entre os mais renitentes aliados do regime israelense, é inegável o cansaço em marchar lado a lado com os genocidas que operam em tempo real, ao vivo, aos olhos do mundo inteiro.

Possivelmente, a mais clara expressão disso foi a declaração do mais graduado congressista norte-americano de ascendência judaica, o líder da maioria no Senado, Chuck Schumer, que alertou que Israel não pode sobreviver se se tornar um pária global.

Schumer acusou Netanyahu de colocar sua sobrevivência política acima do interesse nacional [israelense] ao “tolerar” o elevado número de vítimas civis em Gaza, que “está levando o apoio a Israel em todo o mundo a mínimos históricos”. Israel – ele acrescentou –“não pode sobreviver caso se torne um pária”.

Questão que entrou na ordem do dia, à medida do genocídio perpetrado em Gaza pelas forças coloniais de Israel, e sua denúncia pela África do Sul, que granjeou, no mundo inteiro, imensa autoridade moral por sua luta – e vitória – contra o racismo, o apartheid e o fascismo.

Registre-se que aqui Schumer se preocupa com uma questão que vai além e é crucial para a reeleição de seu chefe Biden, a perda dos chamados “votos descompromissados”, de parte dos eleitores norte-americanos de ascendência árabe ou muçulmana, que pode decidir a favor de Trump a votação nos decisivos Estados-pêndulo, em que a diferença foi ínfima nas duas últimas eleições.

FOME COMEÇA A INCOMODAR BERLIM

Também a Alemanha, país que ingressou na Corte Internacional de Justiça da ONU em Haia, ao lado de Israel, no caso da acusação sul-africana de genocídio, e cúmplice no corte dos recursos para a ajuda humanitária aos palestinos, sob falsas acusações de Tel Aviv à agência da ONU UNRWA, se viu diante da urgência em parar Netanyahu, antes que seja tarde demais.

Em visita a Israel, o primeiro-ministro Olaf Scholz, questionou como ficariam em caso de um ataque militar “mais de 1,5 milhões de pessoas, para onde podem ir?”, acrescentando não ser apenas uma questão de “lógica militar”, mas por uma questão humanitária. “Não podemos ficar parados, observando os palestinos morrerem de fome”.

Scholz disse ainda que uma ofensiva israelense em Rafah “tornaria muito difícil qualquer progresso em direção à paz”.

Por sua vez, a presidente da Comissão Europeia, a alemã Ursula Von der Leyen, disse no domingo que Gaza estava “enfrentando a fome” e era preciso um acordo de cessar-fogo urgente.

“É crítico alcançar rapidamente um acordo de cessar-fogo que liberte os reféns e permita mais ajuda humanitária chegar a Gaza”, ela acrescentou.

Também no domingo, o governo do Egito, que vem atuando como mediador ao lado do Qatar nas negociações, afirmou, à margem de uma cúpula egípcio-europeia, que “rejeita o deslocamento forçado de palestinos para suas terras e não o permitirá”, segundo a agência de notícias Anadolu.

O presidente egípcio, Abdel Fattah Al Sisi, também ressaltou a necessidade de um cessar-fogo na Faixa de Gaza e alertou contra as “graves consequências” um ataque terrestre israelense à Rafah, chamando a cidade de “último porto seguro dentro de Gaza”.

“NÃO EM NOSSO NOME”

Para o editor-chefe do Middle East Eye, David Hearst, o temor de Schumer sobre o “Estado pária” é compreensível, mas tardio. “Um rubicão foi cruzado. Com esta guerra, Israel entrou para o posto de elite dos Estados párias. Agora é o mais feio dos feios. É impossível perdoar. Não pode ser justificado, nem pode ser contextualizado. Toda a operação em Gaza é uma atrocidade”.

Agindo assim, “Israel se tornou não o lar de um povo sitiado perseguido em todo o mundo por milênios, mas o Fort Knox do supremacismo judaico, o herdeiro natural dos supremacistas brancos.”

Hearst chama a atenção para o “efeito transformador” sobre o povo judeu em todo o mundo, “em nome de quem e passado comum esses crimes estão sendo cometidos”.

Ele destacou o apelo emocionado de Jonathan Glazer, o realizador britânico de A Zona de Interesse, no seu discurso de aceitação do Oscar: “Estamos aqui como homens a refutar que seu judaísmo e o Holocausto sejam sequestrados por uma ocupação que levou a desumanização e conflitos, atingindo tantas pessoas inocentes”.

O mesmo grito de “não em meu nome” – acrescentou Hearst – vem dos “milhares de jovens judeus que marcham todos os fins de semana em Londres para parar a guerra em Gaza.

Ele cita uma ativista judia do grupo Na’amod (Fiquemos de Pé, em hebraico) UK, Emily, que disse recentemente: “Acho que houve um ajuste de contas tranquilo em nossa comunidade, e você pode ver isso porque o bloco continua crescendo, o movimento continua crescendo, as organizações continuam ficando cada vez maiores. Nunca tive tanta certeza de que verei uma Palestina livre.”

Emily acrescentou estar “muito cansada de ouvir de pessoas que não são judias como é se sentir como judia. Estou cansada de ouvir que devo sentir medo quando essas marchas são em geral pacíficas e as pessoas são tão amáveis ​​e gratas a nós. Isso realmente mostra a ignorância da opinião judaica fora da sua pequena turba sionista.”

O SUPREMACISMO ENCURRALADO

A tentativa de Netanyahu de coesionar a sociedade israelense, profundamente dividida sobre a marcha batida para a oficialização do apartheid como demonstrado nos protestos de meses por sua renúncia e contra o ataque ao judiciário, via a guerra e o genocídio, também cobram um preço cada vez mais insustentável dentro de Israel.

O que se expressa inclusive dentro do “gabinete de guerra”. Como quando o ministro da Defesa, Yoav Gallant, passou a contestar o gabinete de guerra de Netanyahu como o local capaz de construir um acordo de cessar-fogo, afirmando que a questão das negociações deve ser debatida em câmaras adequadas.

Em outro desdobramento, o ministro que deixou a oposição para integrar o gabinete de Netanyahu, Beny Gantz, fez visitas aos EUA e ao Reino Unido à revelia de Netanyahu, que proibiu as embaixadas israelenses de lhe prestarem qualquer apoio.

Voltando a Schumer. Ele relatou ao Washington Post ter passado dois meses matutando sobre o que fazer para evitar que se cristalize a percepção de Israel como Estado pária.

Para ele, “gente demais está virando contra Israel porque não gostam de Netanyahu”. “E eu sinto que é imperativo mostrar que você pode ser contra Netanyahu e ainda ser muito pró-Israel, como certamente eu sou”.

“Nós não estamos determinando quem Israel deve escolher”, continuou Schumer. “Nós só estamos pedindo que eles tenham o direito de escolher quando tantas pessoas estão indignadas com a direção do presente governo em Israel”.

UNIDADE PALESTINA

Em contraste com a divisão nas hostes supremacistas israelenses, há sinais crescentes de unidade nas fileiras palestinas, como ensaiado na reunião em Moscou a convite do governo russo.

Assim, a lista do Hamas para a troca de presos dentro do processo de instauração do cessar-fogo, inclui os principais nomes de todas as organizações da resistência, que estão nos cárceres israelenses.

Inclui Marwan Barghouti, o líder do Fatah condenado a cinco penas cumulativas de prisão perpétua e 40 anos de prisão por seus atos na Segunda Intifada; Ahmed Saadat, secretário-geral da Frente Popular para a Libertação da Palestina; Abdullah Barghouti, líder militar do Hamas; e Ibrahim Hamid, líder da Segunda Intifada.

A resistência, em todas as suas nuances, nacionalistas, seculares e islâmicos. O que abriria o espaço para uma profunda renovação da liderança palestina e uma chance real de negociar o fim do conflito. Marwan, que fez questão de aprender hebraico na prisão, é conhecido como o “Mandela palestino”.

A recém apresentada nova proposta de cessar-fogo do Hamas – já considerada “irreal” por Israel, segundo a Reuters – o texto pede a libertação de 700 a 1.000 prisioneiros palestinos, incluindo 100 condenados à prisão perpétua. Em troca, o Hamás libertaria reféns israelenses. A primeira leva incluiria mulheres, crianças, idosos e pessoas doentes. Em um segundo momento, todos os detidos de ambos os lados seriam libertados.

A proposta apresentada pelo Hamás inclui três estágios, o primeiro com um cessar-fogo de seis semanas e, no terceiro estágio, permanente na Faixa de Gaza, mais envio imediato de ajuda humanitária aos palestinos, retorno dos deslocados para suas casas, inclusive no norte agora invadido por tropas de Israel e a retirada dos militares israelenses do enclave.

“VÁ E VEJA”, AO ESTILO NETANYAHU

Dois relatos de Hearst sobre a carnificina perpetrada pelos israelenses em Gaza parecem saídos de “Vá e Veja”, o icônico filme soviético sobre os crimes nazistas durante a ocupação hitlerista.

No primeiro, um garotinho falava com a veracidade de um adulto. Faisal al-Khaldi contou do momento em que soldados israelenses entraram na casa de sua família no bairro de Sheikh Radwan, na Cidade de Gaza, quando ele se preparava para ir à escola.

“Minha mãe estava grávida”, disse ele a um repórter da TV Alaraby que o entrevistava. “Quando estávamos indo para a escola, eles (soldados israelenses) entraram na sala e atiraram na barriga da minha mãe. Ela estava grávida no sétimo mês.”

“Onde estava seu pai?”

“Ele estava dormindo”, disse o menino.

“E então ele acordou?”

“Ele foi morto com minha mãe na mesma semana.”

“No mesmo dia?

“Sim.”

“Na sua frente? Você viu isso acontecer?”

“Sim, na minha frente.”

“O que você viu? O que aconteceu?

“Eles os levaram para o corredor e atiraram na minha frente. Quando fomos para o corredor, eles trouxeram e atiraram na nossa frente.”

A seguir, Hearst se debruça sobre os parabéns, nas redes sociais, de soldados israelenses a um companheiro de atrocidades que matara um homem idoso desarmado, com dificuldades de audição e fala, e que estava com as mãos levantadas em seu quarto.

“Abrimos a porta. Ele tremeu. Veio na minha direção e fez assim (acenou com as mãos). Eu o matei com quatro tiros”, disse o soldado.

“Ele era o único?”, perguntou um colega em um vídeo postado no X.

“Não sei. Não tivemos tempo. Poderia haver mais. Havia outra sala. Não tivemos tempo.”

“E ele disse: ‘não, não?’”

“Sim, ‘não, não’.”

“E você o derrubou? Excelente!”

Mais tarde no clipe, o soldado foi questionado: “E sem arma? Ele tinha alguma coisa nele?”

“Não, não, ele se escondeu ao lado da cama.”

Hearst registra que tais vídeos “mostram soldados israelenses conversando entre si. Eles parecem desdenhar do que o resto do mundo pode pensar, e totalmente ignorantes do efeito que esses clipes estão tendo em todo o mundo”.

E conclui: “Mas o mundo está assistindo”.

Fonte: Papiro