O soldado Bushnell decidiu se imolar para chamar atenção ao genocídio do povo palestino | Foto: Twitter

No relato da Palestine Chronicle, um membro da ativa da Força Aérea dos Estados Unidos ateou fogo em si mesmo em frente à embaixada israelense em Washington, DC, no domingo (25), em protesto contra a guerra genocida de Israel na sitiada Faixa de Gaza. Mais tarde, ele morreu devido aos ferimentos.

“Meu nome é Aaron Bushnell, sou um membro da ativa da Força Aérea dos Estados Unidos e não serei mais cúmplice de genocídio”, disse o jovem de 25 anos antes de se incendiar.

“Estou prestes a me envolver em um ato extremo de protesto, mas, em comparação com o que as pessoas têm experimentado na Palestina nas mãos de seus colonizadores, não é nada extremo. Isso é o que a nossa classe dominante decidiu que será normal”, continuou. 

O vídeo mostra Bushnell, vestido com seu uniforme, caminhando até o prédio da embaixada, colocando seu telefone no chão e despejando um líquido sobre si mesmo antes de se incendiar. Enquanto as chamas o envolvem, ele grita repetidamente: “Palestina livre!” 

Policiais são ouvidos gritando ao fundo enquanto um policial pulveriza Bushnell com um extintor de incêndio, outro é visto apontando uma arma para ele enquanto ele desaba no chão. “Não preciso de armas, preciso de extintores!”, ouve-se um policial gritando.

Em uma postagem, Bushnell escreveu: “Muitos de nós gostamos de nos perguntar: ‘O que eu faria se estivesse vivo durante a escravidão? Ou o Jim Crow no sul? Ou o apartheid? O que eu faria se meu país estivesse cometendo genocídio?”

O vídeo gerou uma ampla repercussão nas redes sociais, com a jornalista Sana Saeed dizendo: “o nome de Aaron Bushnell viverá como um exemplo de desafio moral e protesto contra um regime de genocídio. Desistiu da vida por algo maior do que ele mesmo, contra o próprio uniforme. Os muros estão apodrecendo, as pessoas estão sufocando e esse governo e suas instituições se recusam a se importar.”

Outro internauta disse que o militar americano “fez o sacrifício final pela humanidade. Meu coração está com a família dele”.

O último ato de protesto de Bushnell ocorre no momento em que a guerra genocida de Israel na Faixa de Gaza mata cerca de 30.000 palestinos, de acordo com o Ministério da Saúde de Gaza. Além disso, 70.043 pessoas ficaram feridas na agressão iniciada em 7 de outubro. Outras 7.000 pessoas estão desaparecidas, presumivelmente mortas sob os escombros de suas casas em toda a Faixa de Gaza. A maioria dos mortos e feridos são mulheres e crianças.

 A agressão israelense também resultou no deslocamento forçado de quase dois milhões de pessoas de toda a Faixa de Gaza, no que se tornou o maior êxodo em massa da Palestina desde a Nakba de 1948. Israel está atualmente em julgamento na Corte Internacional de Justiça acusado de violar a Convenção sobre Genocídio em seu ataque ao enclave palestino.

A ICÔNICA FOTO DO MONGE BUDISTA EM SAIGON

O ato de Aaron também fez Ann Wright, coronel da reserva e um dos fundadores dos Veteranos pela Paz (VFP), rememorar outros episódios em que a imolação foi a forma encontrada para convocar o mundo contra a injustiça e a barbárie, particularmente para deter a guerra dos EUA contra o Vietnã.

Ela registrou como em março de 2018, em visita ao Vietnã, a delegação do VFP viu a icônica foto do monge budista Quang Duc que se incendiou em junho de 1963 em uma rua movimentada em Saigon para protestar contra a repressão do regime de Diem contra budistas durante os primeiros dias da guerra americana no Vietnã.

“Essa foto está marcada em nossas memórias coletivas”, ela assinalou, lembrando que mostra centenas de monges cercando a praça para manter a polícia fora para que Quang Duc pudesse completar seu sacrifício.

A autoimolação – acrescentou Ann Wright – se tornou “um ponto de inflexão na crise budista e um ato crucial no colapso do regime de Diem nos primeiros dias da guerra americana contra o Vietnã”.

Ann também contou como ficou sabendo na viagem ao Vietnã e viu, pela primeira vez, os retratos de cinco americanos que haviam dado suas vidas para protestar contra a guerra americana no Vietnã, e ainda hoje reverenciados no Vietnã.

Apesar de terem caído no esquecimento em sua própria nação, ela observou, “eles são mártires bem conhecidos no Vietnã, 50 anos depois”.

A primeira viagem dela ao Vietnã fora em 2014, uma delegação de dezessete — seis veteranos do Vietnã, três do Afeganistão, um veterano do Iraque e sete ativistas civis pela paz — com quatro membros do Veteranos pela Paz que vivem no Vietnã, e que se reuniu com membros da Sociedade de Amizade Vietnã-EUA em sua sede em Hanói.

NORMAN MORRISON

Ao ver um retrato em particular – o de Norman Morrison – ela tomou a decisão de escrever sobre esses americanos que abriram mão das próprias vidas em uma tentativa de parar a guerra americana contra o povo vietnamita.

O que distinguia esses americanos – ela sublinhou – “era que, enquanto soldados americanos matavam vietnamitas, havia cidadãos americanos que acabavam com suas próprias vidas para tentar trazer o terror da invasão e ocupação de cidadãos vietnamitas para o público americano através do horror de suas próprias mortes”.

A primeira pessoa nos EUA a morrer de autoimolação em oposição à guerra do Vietnã foi a quaker Alice Herz, de 82 anos, que morava em Detroit, Michigan. Ela se incendiou em uma rua de Detroit em 16 de março de 1965. Antes de morrer de queimaduras, 10 dias depois, Alice disse que ateou fogo em si mesma para protestar contra “a corrida armamentista e um presidente usando seu alto cargo para acabar com pequenas nações”.

Seis meses depois, em 2 de novembro de 1965, Norman Morrison, um quaker de 31 anos de Baltimore, pai de três filhos pequenos, morreu de autoimolação no Pentágono.

Morrison sentiu que os protestos tradicionais contra a guerra tinham feito pouco para acabar com a guerra e decidiu que incendiar a si mesmo no Pentágono poderia mobilizar pessoas suficientes para forçar o governo dos Estados Unidos a abandonar seu envolvimento no Vietnã.

A escolha de Morrison de se autoimolar foi particularmente simbólica na medida em que se seguiu à controversa decisão do presidente Lyndon Johnson de autorizar o uso de napalm no Vietnã, um gel que queima grudado na pele e derrete a carne.

O próprio secretário do Pentágono da época, Robert McNamara, registrou o impacto do sacrifício de Morrison em seu livro de memórias de 1995.

“Os protestos antiguerra tinham sido esporádicos e limitados até então e não haviam chamado a atenção. Depois veio a tarde de 2 de novembro de 1965. No crepúsculo daquele dia, um jovem quaker chamado Norman R. Morrison, pai de três filhos e oficial do Stony Run Friends Meeting em Baltimore, se queimou até a morte a 40 metros da janela do Pentágono. Era um clamor contra a matança que estava destruindo a vida de tantos jovens vietnamitas e americanos”.

Uma semana após a morte de Norman Morrison, Roger LaPorte, 22, um trabalhador católico, tornou-se o terceiro manifestante de guerra a tirar a própria vida. Ele morreu de queimaduras sofridas por autoimolação em 9 de novembro de 1965 na Praça das Nações Unidas em Nova York. Ele deixou um bilhete que dizia: “Sou contra a guerra, todas as guerras. Fiz isso como um ato religioso.”

VIGÍLIAS CONTRA A GUERRA

As três mortes em protesto em 1965 mobilizaram a comunidade antiguerra para iniciar vigílias semanais na Casa Branca e no Congresso. E todas as semanas, os quakers eram presos nas escadarias do Capitólio enquanto liam os nomes dos mortos americanos, de acordo com David Hartsough, um dos delegados em nossa viagem de 2014.

Hartsough, que participou de vigílias antiguerra 50 anos antes, descreveu como eles convenceram alguns membros do Congresso a se juntarem a eles. O deputado George Brown (D-Calif.) tornou-se o primeiro membro do Congresso a fazê-lo. Depois que os Quakers foram presos e encarcerados por lerem os nomes dos mortos de guerra, Brown continuaria a ler os nomes, desfrutando da imunidade do Congresso contra a prisão.

Dois anos depois, em 15 de outubro de 1967, Florence Beaumont, uma unitária de 56 anos e mãe de dois filhos, ateou fogo em si mesma em frente ao prédio federal em Los Angeles.

A BARBÁRIE DO NAPALM

Seu marido George disse mais tarde: “Florence tinha um profundo sentimento contra o massacre no Vietnã… Ela era uma pessoa perfeitamente normal, dedicada, e sentia que tinha que fazer isso como aqueles que se queimaram no Vietnã. O napalm bárbaro que queima os corpos das crianças vietnamitas separou as almas de todos os que, como Florence Beaumont, não têm água gelada para sangue, pedras para corações. O fósforo que Florence usou para tocar suas roupas encharcadas de gasolina acendeu um fogo que não se apagará – nunca – um fogo sob nós gatos gordos complacentes e presunçosos tão amaldiçoadamente seguros em nossas torres de marfim a 9.000 quilômetros das explosões de napalm, e ISSO, temos certeza, é o propósito de seu ato.”

Três anos depois, em 10 de maio de 1970, George Winne Jr., de 23 anos, filho de um capitão da Marinha e estudante da Universidade da Califórnia, em San Diego, ateou fogo em si mesmo na Revelle Plaza da universidade, ao lado de uma placa que dizia “Em nome de Deus, acabe com esta guerra”.

A morte de Winne ocorreu apenas seis dias depois que a Guarda Nacional de Ohio disparou contra uma multidão de estudantes da Universidade Estadual de Kent, matando quatro e ferindo nove, durante a maior onda de protestos da história do ensino superior americano.

“PARA A MINHA FILHA, EMILY”

Ann relatou, ainda, como na reunião de 2014 no escritório da Sociedade de Amizade Vietnã-EUA em Hanói, David Hartsough apresentou Held in the Light, um livro escrito por Ann Morrison, viúva de Norman Morrison, ao embaixador Chin, um embaixador vietnamita aposentado nas Nações Unidas e agora um funcionário da Sociedade. Hartsough também leu uma carta de Ann Morrison ao povo do Vietnã.

O embaixador Chin respondeu dizendo ao grupo que os atos de Norman Morrison e outros americanos em acabar com suas vidas são bem lembrados pelo povo do Vietnã. Ele acrescentou que cada criança vietnamita aprende uma canção e poema escrito pelo poeta vietnamita Tố Hữu chamado “Emily, My Child” [Emily, minha criança] dedicado à filha pequena que Morrison estava segurando apenas momentos antes de se incendiar no Pentágono. O poema lembra a Emily que seu pai morreu porque sentiu que tinha que se opor da maneira mais visível às mortes de crianças vietnamitas nas mãos do governo dos Estados Unidos.

Fonte: Papiro