“Mais uma vitória destas e estou perdido”, teria afirmado o general Pirro (318 a.C.-272 a.C.), rei do Épiro e da Macedônia, após a sangrenta Batalha de Ásculo. Pela segunda vez seguida, o Exército de Épiro havia derrotado os todo-poderosos romanos. Mas o custo foi alto: quase todos os seus comandantes militares morreram no conflito, assim como 3.500 oficiais e soldados. Não haveria reposição à altura – os homens de Epiro queriam distância do Exército e da tirania de Pirro.

O presidente argentino, Javier Milei, tem muito a aprender com a conhecida história de um dos grandes generais da Antiguidade. A aprovação nesta sexta-feira (2) da “Ley Ómnibus” na Câmara de Deputados representou para o governo uma vitória com sabor de derrota – a chamada “vitória de Pirro”. Foram 144 votos a favor do megaprojeto e 109 contrários – mas o resultado da votação foi o que menos importou.  

Desde que tomou posse na Casa Rosada, em 10 de dezembro, Milei tenta implantar suas propostas ultraliberais à margem de um Congresso onde seu partido, A Liberdade Avança, só conta com 15% dos deputados e senadores. Para impor a reforma trabalhista, por exemplo, o presidente recorreu a um arbitrário DNU (Decreto de Necessidade e Urgência). A Justiça, por meio da Câmara do Trabalho da Argentina, conteve seu ímpeto antidemocrático e anulou integralmente a reforma.

O governo decidiu, então, concentrar todo o “saco de maldades” num único pacotaço ultraliberal e autoritário, a Ley Ómnibus – ou Lei de Bases e Pontos de Partida para a Liberdade dos Argentinos –, que chegou à Câmara com 664 artigos. Em meio à tramitação do projeto, protestos pipocaram nas ruas argentinas, com destaque para a Greve Geral de 24 de janeiro.

A insatisfação popular cresceu. De acordo com pesquisa do instituto Zuban Córdoba, divulgada em 29 de janeiro, 52,8% dos argentinos “desaprovam totalmente” a gestão Milei e 54,4% veem o país caminhando “na direção errada”. Sob pressão, o governo se viu obrigado a recuar.

A sessão para votar a Ley Ómnibus se arrastou por três dias e mais de 50 horas. A base governista foi orientada a só iniciar a votação quando houvesse certeza de sua aprovação. Para isso, porém, houve muitas concessões. Dos 664 artigos originais, sobraram 382.

As reformas tributária e eleitoral ficaram de fora. O capítulo de desestatização – que inicialmente previa deixar todas as 47 empresas públicas “sujeitas à privatização” – foi alterado: só restaram 27 estatais e, mesmo assim, as regras para a privataria estão menos flexíveis. A venda de qualquer empresa deverá ser previamente submetida a uma comissão parlamentar mista, com poder de veto.

As tentativas de conceder “poderes extraordinários” à Presidência da República também foram questionadas. Milei queria usar o contexto de crise econômica para declarar “emergência pública” em diversas áreas por dois anos, prorrogáveis por mais dois, sem precisar da anuência do Congresso. Os deputados cortaram mais metade das áreas e reduziram a duração de uma eventual “emergência” a um ano, renovável por mais um, desde que o Congresso autorize.

Mesmo com o abrandamento do projeto, o governo conseguiu aprovar apenas o texto-base, com as diretrizes gerais. A partir de terça-feira (6), todos os 382 artigos terão de ser analisados e votados um a um, o que levará a uma nova rodada de negociações. Certamente a desregulamentação da economia será menor – bem menor – do que Milei prometia. Depois da Câmara, a Ley Ómnibus ainda tem de passar pelo Senado.

A Argentina não está livre de retrocessos, mas Milei vê sua gestão mais enfraquecida após essa primeira batalha. Nos três dias de votação, o poderio da Casa Rosada foi testado. Do lado de fora da Câmara, protestos levaram oito manifestantes à prisão e deixaram 32 jornalistas feridos. Do lado de dentro, os deputados da oposição conseguiram obrigar o governo a negociar cada proposta relevante do presidente.

“Esperamos contar com a mesma grandeza no dia da votação específica da lei, para que ela avance ao Senado”, declarou, nas redes sociais, um Milei mais ponderado, menos Milei. Ciente de que ainda terá de ceder para deputados e senadores, o líder ultradireitista sabe que não pode mais conquistar “vitórias de Pirro”, sob o risco de perder precocemente o comando do país.