Conforme países do centro do capitalismo se apropriam de reservas russas, venezuelanas e afegãs, por exemplo, conforme sua conveniência, põem em risco a segurança do dólar.

A União Europeia (UE) está planejando utilizar os bilhões de dólares gerados pelos ativos russos congelados para ajudar na reconstrução da economia ucraniana, devastada pela guerra. Após a invasão da Rússia em fevereiro de 2022, os países ocidentais congelaram quase metade das reservas estrangeiras de Moscou, totalizando cerca de 300 bilhões de euros (R$ 1,6 trilhão).

A transferência dos ativos russos congelados para a Ucrânia tem gerado controvérsias, com alguns expressando preocupações sobre possíveis violações do Direito Internacional e impactos na confiança no euro como uma das principais moedas de reserva global. No entanto, a UE está determinada a responsabilizar a Rússia pela reconstrução da Ucrânia, estimada pelo Banco Mundial em 411 bilhões de dólares (R$ 2 bilhões) ao longo da próxima década.

A Euroclear, uma instituição financeira com sede na Bélgica que mantém ativos seguros para bancos, bolsas e investidores, detém cerca de 200 bilhões de euros (R$ 1 trilhão) desses ativos russos congelados. Recentemente, a Euroclear divulgou que obteve 5,2 bilhões de euros (R$ 27,8 bilhões) em juros sobre esses ativos desde que foram congelados pelas sanções da UE e do Grupo dos Sete em 2022.

Os líderes da UE concordaram em um pacote de financiamento crucial de 50 bilhões de euros (R$ 267 bilhões) para a Ucrânia e estão considerando a utilização dos lucros acumulados nas contas da Euroclear para contribuir para esse esforço de reconstrução. A proposta envolve a criação de uma taxa especial para recolher receitas extraordinárias de juros, que seriam destinadas ao orçamento da UE para a reconstrução da Ucrânia.

Segundo reportagem do New York Times, autoridades da administração Biden acreditam que o confisco dos ativos russos seria ilegal e poderia desencorajar outros países a confiar nos EUA e no dólar como moeda de investimento.

Anteriormente, a chefe do Departamento do Tesouro, Janet Yellen, afirmou que o confisco dos ativos russos devido à situação na Ucrânia é ilegal.

O jornal americano referiu que fontes ligadas ao governo Biden estão debatendo as possibilidades dessa ação “encorajar outros países a colocar suas reservas nacionais em outras moedas, mantendo-as fora dos EUA”.

Bumerangue contra os EUA

Já em maio de 2023, declarações do porta-voz do presidente russo, Dmitry Peskov, destacavam a indignação da Rússia em relação aos planos dos Estados Unidos de entregar os bens apreendidos do empresário russo Konstantin Malofeev para a Ucrânia. Peskov classificou tal medida como um ato de roubo que terá repercussões negativas para a confiança nos Estados Unidos. Na ocasião, se considerava apenas os bens deste empresário, e não as reservas do Banco Central russo.

“Em primeiro lugar, é claro, trata-se de um dano para a pessoa de quem esse dinheiro foi ilegalmente retirado ou roubado. É um dano direto. Mas quanto aos Estados Unidos, essas decisões, é claro, os atingem com um bumerangue”, afirmou Peskov.

O porta-voz enfatizou a necessidade de uma análise cuidadosa para determinar se haverá tentativas de fundamentar legalmente tais decisões. Ele expressou dúvidas sobre a existência de uma base legal para tal ato, considerando-o um ataque direto ao direito de propriedade, algo considerado “absolutamente sagrado para os Estados Unidos”. Peskov alertou que essa abordagem mina a confiança dos investidores e proprietários de ativos vinculados aos Estados Unidos.

Peskov denunciou essas decisões como “mais um passo para desrespeitar todas as regras e normas do direito internacional”. O ministro das Relações Exteriores da Rússia, Sergei Lavrov, por sua vez, acrescentou que, se a Rússia continuasse com o status quo do comércio não baseado em rublos para o gás russo com a Europa, os países ocidentais poderiam facilmente “embolsar” o dinheiro novamente conforme sua conveniência.

Risco de colapso econômico global

Embora tenha havido concordância preliminar entre os Estados-membros da UE para aproveitar os lucros desses ativos russos congelados, os detalhes práticos da implementação ainda estão sendo elaborados por advogados, antes de serem submetidos à aprovação final pelos Estados-membros.

A Euroclear, por sua vez, relatou um aumento significativo em seus lucros e custos, impulsionado pelos pagamentos relacionados aos ativos russos congelados. A instituição está enfrentando desafios legais e operacionais devido às sanções, e destacou que os custos administrativos adicionais associados a essas medidas totalizaram 62 milhões de euros (R$ 331 milhões) no ano passado.

“O número de sanções e contra-sanções introduzidas desde fevereiro de 2022 não têm precedentes e continuam tendo impacto significativo nas operações diárias do Euroclear”, afirmou o grupo em nota.

Apesar do aumento nos lucros, a Euroclear está envolvida em vários processos judiciais relacionados às sanções, predominantemente em tribunais russos, à medida que requerentes buscam acesso aos ativos bloqueados. A empresa afirmou que continua retendo lucros relacionados a esses ativos até que sejam fornecidas mais orientações sobre sua distribuição ou gestão.

O ministro português dos Negócios Estrangeiros, João Gomes Cravinho, admite um “consenso político” na UE para avançar com a utilização dos lucros dos bens russos congelados, já que não há base jurídica para isso. “[Quanto] ao debate que está a ter lugar sobre os fundos congelados da Rússia em virtude de sanções, se podem ou não ser utilizados para a reconstrução da Ucrânia, […] neste momento, não há base jurídica para isso, mas há um consenso político quanto à utilização dos rendimentos desses fundos congelados, que já são consideráveis”, disse João Gomes Cravinho.

A transferência planejada de ativos russos congelados para a Ucrânia tem gerado controvérsias e preocupações de que possa desencadear um colapso econômico global. O ex-conselheiro sênior do Pentágono, coronel Douglas Macgregor, alertou que a ação ilegal de confiscar e transferir esses ativos pode levar a consequências desastrosas para a economia dos EUA, detonando um colapso no sistema financeiro global.

“Quando o governo dos EUA confiscar ilegalmente US$ 300 bilhões [R$ 1,47 trilhão] em ativos russos e os entregar ao governo corrupto da Ucrânia em Kiev, a Arábia Saudita, a Índia, a China e uma série de outros países vão vender os títulos do Tesouro dos EUA a preços baixos, detonando os explosivos que demolirão o sistema financeiro global americano e afundarão a economia dos EUA”, disse o especialista.

Desdolarização

Outro que falou em “cataclisma” para o sistema financeiro global dominado pelo dólar, é o renomado economista e Prêmio Nobel, Robert Shiller, professor da Universidade de Yale. Em entrevista ao jornal italiano La Repubblica, Shiller expressou preocupações sobre os impactos que tal ação poderia ter na confiança global no dólar. Ele ressaltou que expropriar ativos russos, confiados pelos países do G7 e outros, seria um precedente perigoso, minando a segurança tradicionalmente associada à moeda norte-americana.

O economista destaca que essa medida “destruirá a auréola de segurança que rodeia o dólar”, sinalizando um possível primeiro passo rumo à desdolarização. Ele argumenta que, ao comprometer a confiança no dólar, países como China, nações em desenvolvimento e até mesmo a própria Rússia podem se inclinar para outras moedas, como o euro ou o yuan chinês.

Shiller observou que muitos países já estão considerando a diversificação de suas reservas, afastando-se do dólar como a principal moeda de reserva. O economista alerta que há inúmeras variáveis a serem consideradas, pois tal decisão paradoxalmente poderia prejudicar os próprios Estados Unidos e o bloco ocidental como um todo.

A ofensiva militar russa no território ucraniano, lançada a 24 de fevereiro do ano passado, mergulhou a Europa naquela que é considerada a crise de segurança mais grave desde a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Os aliados ocidentais da Ucrânia têm fornecido armas a Kiev e aprovado sucessivos pacotes de sanções à Rússia para tentar diminuir a capacidade de Moscou de financiar a guerra.

(por Cezar Xavier)