Foto: Tomas Silva/Agência Brasil

Está na pauta do Supremo Tribunal Federal (STF) um julgamento cujo resultado pode mudar, para o bem ou para o mal, a vida dos entregadores de aplicativos: o vínculo empregatício entre esses trabalhadores e as plataformas. As últimas decisões da Corte não são animadoras, por seguirem no sentido contrário aos interesses dessa categoria, uma das mais precarizadas do mundo laboral e que é composta, no Brasil, por cerca de 1,5 milhão de pessoas, segundo o IBGE. 

O julgamento, que constava da pauta do STF desta quinta-feira (8), trata de uma ação que contesta decisão da 2ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho (TST), pela qual foi reconhecido o vínculo entre um entregador em São José dos Pinhais (PR) e a Uber Eats, braço da plataforma voltado para a entrega de alimentos.

No processo, o entregador alegou ter prestado serviços para a Uber entre maio e julho de 2021, sem registro na carteira de trabalho, até ser descredenciado. Para requerer o vínculo de emprego, apresentou prints dos registros diários de corridas, trajetos, horários e valores recebidos, obtidos a partir da plataforma digital da própria empresa.

Quando houve o julgamento do TST, a relatora, desembargadora Margareth Rodrigues Costa, destacou que as atividades econômicas das plataformas “consomem trabalho, auferem lucros, exercem poderes diretivos e que, portanto, devem ser vinculadas também a responsabilidades trabalhistas”.

Por outro lado, o STF tem decidido em sentido contrário sobre o tema. Em julgamento sobre outro processo semelhante, em dezembro do ano passado, por exemplo, o ministro-relator, Alexandre de Moraes, entendeu que “aquele que faz parte da Cabify, da Uber, do iFood, tem a liberdade de aceitar as corridas que quer. Ele tem a liberdade de fazer o seu horário e tem a liberdade de ter outros vínculos”. 

O ministro argumentou, ainda, que a Justiça Trabalhista estaria descumprindo, reiteradamente, precedentes do plenário do Supremo sobre a inexistência de relação de emprego entre as empresas de aplicativos e os motoristas.

Direitos e Constituição

“A Constituição Cidadã de 1988, no seu artigo 7º, assegura um elenco de direitos aos trabalhadores em geral (e não apenas aos empregados celetistas) — entre eles, a garantia de salário mínimo proporcional à jornada, 13º salário, duração da jornada de trabalho de até 8 horas diárias e pagamento de horas extras ao que exceder, além de normas de saúde, higiene e segurança do trabalho, adicional de insalubridade e de periculosidade etc. E cabe à Justiça do Trabalho garantir que isso se cumpra”, explicou, ao Portal Vermelho, Luiz Alberto Vargas, desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região (TRT-4) e membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD) e do Instituto de Pesquisa e Estudos Avançados da Magistratura e do Ministério Público do Trabalho (Ipeatra). 

Ele avalia que o debate no Supremo se trata, em resumo, “de saber se as normas constitucionais que protegem os trabalhadores se aplicam ou não, por exemplo, aos ‘bicicleteiros’ que pedalam 12 horas por dia para entregar um sanduíche muito vezes mais caro do que a remuneração que receberão pelo dia de trabalho. Coloca-se em dúvida que esses riders sejam trabalhadores porque trabalham com uma bicicleta própria ou alugada”. 

Vargas completa dizendo que tal raciocínio é absurdo, mas aponta que “esse é o dilema que está colocado no Supremo: se esses meninos — em geral jovens, negros, periféricos, de baixa renda e pouca instrução formal — são trabalhadores ou ‘empreendedores’ — sem direito a nada, sem previdência, sem proteção contra acidentes de trabalho, sem remuneração mínima, sem jornada de trabalho estabelecida, sem direito de sindicalização e à negociação coletiva”.

Ao opinião converge com a de lideranças sindicais. “A gente vê com grande preocupação esse julgamento porque o STF, de certa forma, vem julgando o contrário do que é decidido na Justiça Trabalhista, descaracterizando e fragilizando essa instância”, aponta, ao Portal Vermelho, Valter Ferreira, presidente do Sindicato dos Motociclistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindimoto-RS) e integrante da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB). 

O dirigente sindical acrescenta que “os aplicativos se escondem atrás de uma cortina de fumaça sob o prisma de que não prestam serviço, que são apenas um elo de ligação. Só que esses aplicativos determinam o horário, cortam ou suspendem o trabalhador… E é através da plataforma que todas as decisões em termos de punição contra o trabalhador são tomadas, enquanto que a outra ponta — que seria, por exemplo, o restaurante ou a farmácia — apenas entrega a mercadoria”. 

Nos últimos meses, Ferreira participou dos debates do grupo de trabalho do governo federal que discutiu o tema para formatar uma legislação a respeito. Entre os pontos que deverão constar na proposta estariam o pagamento de contribuição ao INSS, seguro de vida e valor mínimo por hora trabalhada. “Estamos aguardando que o governo federal envie um projeto para o Congresso Nacional, não criando uma segunda divisão dentro da categoria, mas estabelecendo regras sobre esta questão do vínculo trabalhista, de maneira que todos possam contribuir com o INSS para que haja um fortalecimento da Previdência no sentido de que seja dado apoio social aos trabalhadores”, diz.

Ferreira também rechaça a posição que vem sendo adotada pelo STF. “Infelizmente, a Corte tem olhado, no meu entendimento, de forma muito equivocada, no sentido de dizer que não há vínculo empregatício. Então esse trabalhador tem vínculo empregatício com quem? Se eles dizem que não é com aplicativo, então, com quem é? Ou ele é um nada?”, questiona. 

Reconhecimento

O debate em torno do tema não é exclusividade do Brasil, mas em outros países, houve avanços — como na Espanha e na França, onde o vínculo foi reconhecido. “É uma questão que se coloca hoje no mundo inteiro. E só se explica pelo imenso poder econômico e político das empresas que contratam esses trabalhadores. Em muitos países, eles têm sido reconhecidos como empregados com todos os direitos ou, pelo menos, como trabalhadores com algum grau de proteção, especialmente previdenciário e sindical”, pondera o desembargador Luiz Alberto Vargas. 

O magistrado lembra que “uma coisa é certa e comum a todos eles: são trabalhadores — e não empresários. Portanto, o risco do negócio não pode recair sobre eles. Pelo contrário: a eles se aplicam as normas de proteção do trabalho”. 

Neste sentido, é importante destacar o alto índice de acidentes que acometem esses trabalhadores. Levantamento feito pelo Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) em parceria com a Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec) e divulgado no ano passado mostra que um em cada quatro trabalhadores de plataformas (ou 25%) já se acidentou. Apenas em 2022, foram mais de 24 mil acidentes envolvendo motociclistas no país.

Entre 2021 e 2022, o número de pedidos para o pagamento de DPVAT cresceu 325% no Brasil. E, segundo estimativas da Organização Internacional do Trabalho (OIT), doenças e acidentes de trabalho fazem a economia perder cerca de 4% do produto interno bruto. “Em mediações que o TRT realizou com sindicatos dos trabalhadores de aplicativo e empresas, foi possível constatar o alto número de acidentes de trabalho que vitimam trabalhadores muito jovens que, pela falta de enquadramento como trabalhadores, ficam em total desamparo. A questão é muito grave e urgente”, analisa Vargas. 

Ele conclui dizendo: “neste momento, estamos todos com os olhos voltados ao Supremo, com grande esperança de que se faça justiça. Sem exagero, o mundo está olhando para o Supremo para saber se ele acompanha a tendência internacional de ver os entregadores como trabalhadores e a competência da Justiça do Trabalho para assegurar seus direitos — ou fazer de conta que eles são invisíveis”.