Quem viveu as décadas de 1980 e 1990 certamente comprou mercadorias fabricadas pelos “tigres asiáticos”. Países emergentes, como Cingapura, Coreia do Sul, Hong Kong e Taiwan, passaram a inundar o Ocidente com diversos bens de consumo – de brinquedos a automóveis, passando por computadores, eletroeletrônicos e outros produtos industrializados.

Houve uma segunda geração de “tigres”, formada por Filipinas, Indonésia, Malásia e Tailândia, todos do Sudeste Asiático (alguns autores incluíam o Vietnã na lista). O rugido desse grupo não foi tão alto. Menos ferozes e muito mais vulneráveis, eles viraram “tigrinhos” – ou até “gatinhos” – com a crise de 1997, marcado por desvalorização das moedas nacionais, falências de empresas e recessão econômica. Só na Indonésia, o PIB (Produto Interno Bruto) despencou 15%. Mas o impacto foi global.

Durante a crise, uns poucos analistas já começavam a apontar a ascensão da China como a maior ameaça aos velhos e aos novos “tigres”. De modo preconceituoso, alegavam que o regime chinês, liderado pelo Partido Comunista, era capaz de fabricar produtos em escala superior, mas de má qualidade – os tais “xing-lings”. Pior: a mão de obra estaria submetida a jornadas excessivas, salários irrisórios e outras condições humilhantes, de modo que a exploração – o “trabalho escravo” – garantiria preços imbatíveis às mercadorias “made in China”. A concorrência seria desleal.

O preconceito se generalizou. Quando os chineses entraran no setor automotivo, a reação foi a pior possível. Uma reportagem do The New Tork Times (NYT) resgatou esse momento: “A BYD da China era um fabricante de baterias que tentava construir carros quando exibiu seu mais novo modelo em 2007. Os executivos americanos no salão do automóvel de Guangzhou ficaram boquiabertos com a pintura roxa irregular do carro e o mau ajuste de suas portas”. Segundo Michael Dunne, analista do setor automobilístico ouvido pelo NYT, os chineses “eram motivo de chacota na indústria”.

Todos esses mitos foram caindo, um a um. Especialmente a partir de 2005, as fábricas chinesas passaram a remunerar cada vez melhor seus trabalhadores. Em algumas indústrias, os salários chegaram a ter aumentos reais, de dois dígitos, a fim de reter profissionais mais qualificados. Diferentemente do que apontava o senso comum, a industrialização, o crescimento e o progresso da China não se deram à custa da classe trabalhadora – mas, sim, em benefício dela.

Levantamento da consultoria Euromonitor International revelou que, de 2005 a 2016, os salários por hora triplicaram na indústria chinesa (de US$ 1,20 para US$ 3,60). Em outros países emergentes, houve regressão no mesmo período. Foi o caso do Brasil (US$ 2,90 para US$ 2,70), do México (US$ 2,20 para US$ 2,10) e da África do Sul (US$ 4,30 para US$ 3,60).

Pagar melhores salários não tornou a China menos competitiva, haja vista que a avalanche de produtos chineses continua. Para quem ainda acha que, por regra, são bens de segunda categoria, convém saber que analistas mais sérios já saíram dessa onda, inclusive no setor automotivo.

“Ninguém está rindo da BYD agora”, resume o NYT. “A empresa ultrapassou a Tesla nas vendas mundiais de carros totalmente elétricos no final do ano passado. A BYD está construindo linhas de montagem no Brasil, Hungria, Tailândia e Uzbequistão e se preparando para fazê-lo na Indonésia e no México. Está expandindo rapidamente as exportações para a Europa. E a empresa está prestes a ultrapassar o Grupo Volkswagen, que inclui a Audi, como líder de mercado na China.”

A BYD vendeu 1 milhão de carros a mais em 2022 – e outro 1 milhão de veículos adicionais em 2023. É a primeira vez na história que uma montadora registra dois acréscimos seguidos desse porte. Não se trata de carros populares. Hoje, a BYD é vanguarda – e seu carro elétrico revoluciona em definitivo o selo “made in China”.

Como é comum nessa indústria, a explosão de uma montadora aquece a cadeia econômica. Segundo o New York Times, a BYD “está construindo rapidamente os maiores navios transportadores de automóveis do mundo (…). O primeiro dos navios, o BYD Explorer Nº 1, está em sua viagem inaugural de Shenzhen com 5 mil carros elétricos a bordo e deverá chegar à Holanda em 21 de fevereiro”. Quem ainda ousaria falar de “xing-lings”?