Argentina: como a realpolitik devorou Milei
A Lei de Bases e Pontos de Partida para a Liberdade dos Argentinos, mais conhecida como Ley Ómnibus, era a aposta do presidente Javier Milei para implantar, de uma tacada só, um pacotaço de medidas autoritárias e ultraliberais. Na sexta-feira (2), o governo teve um êxito parcial na Câmara de Deputados, ao aprovar apenas uma versão esquálida da legislação.
A “vitória de Pirro” não foi suficiente, porém, para pôr o ultradireitista Milei em alerta. Mesmo sabendo que cada artigo da Ley Ómnibus teria de ser votado nesta semana pelos deputados, o presidente preferiu dedicar o final de semana à namorada em Mar del Plata. Pior: manteve uma viagem inútil à Israel, onde se fez posar em lágrimas diante do Muro das Lamentações, em Jerusalém, na terça-feira (6).
Como se já não houvesse uma pauta-bomba na política, ele mergulhou numa pauta-bomba religiosa, ao anunciar que transferiria para a Jerusalém Ocidental a sede da embaixada argentina. Por consenso, a comunidade internacional mantém suas representações diplomáticas em Tel Aviv desde a Guerra dos Seis Dias, em 1967, quando Israel tomou dos palestinos a parte oriental de Jerusalém.
Enquanto os deputados argentinos começavam a debater e derrotar os artigos da Ley Ómnibus, Milei mantinha sua agenda turística israelense e planejava a esticada até o Vaticano – até uma audiência com o papa Francisco foi confirmada. Na semana que pode ser a mais decisiva de seu governo, o presidente não viu problemas de se ausentar da Argentina e terceirizar as negociações.
Quando se deu conta de que, de derrota em derrota, só restaria uns poucos fiapos da Ley Ómnibus, Milei concluiu que precisava intervir. Nas redes sociais, ativou sua tradicional verborreia contra deputados e governadores da oposição, aos quais chamou de “casta política”, “criminosos”, “traidores” e “lobos em pele de cordeiro”. De modo paralelo, lançou a ideia de uma lei antiaborto – a pauta de costumes lhe serviu de step.
Na Câmara, um deputado da minguada base governista, Oscar Zago, conseguiu convencer a Mesa Diretora a interromper a votação e transferir o projeto de volta às comissões (Legislação Geral, Orçamento e Assuntos Constitucionais). O regimento interno permite que uma medida regresse à estaca zero. Com a manobra, a vitória que já era modesta foi anulada, mas o governo estacou a sangria.
Ministros cogitaram um plebiscito sobre a Ley Ómnibus para pressionar os parlamentares, supondo que terá vitória em consulta popular – o que é possível, mas improvável a esta altura. Mesmo os apoiadores criticaram Milei por ter concentrado quase todas as maldades de seu ideário num único projeto de lei. Provém daí, por sinal, o nome da proposta, “Ómnibus”, expressão latina que quer dizer “para todos” ou “para tudo”.
Em Jerusalém, o presidente rebateu a queixa, como se a correlação de forças estivesse a seu favor: “O que apresentamos nestes 50 dias é apenas 25% do que reunimos. Ainda temos 3 mil reformas estruturais – e a unidade de transição para a desregulamentação da economia está avançando com os decretos”.
No entanto, o sentimento na Argentina é outro: crescem as apostas de que o governo Milei já se afundou tanto, mas tanto, que nem as melhores equipes de resgate da Matinha sejam capazes de resgatá-lo. Eleito no final de novembro com expressivos 55,65% dos votos válidos e empossado em 10 de dezembro, o presidente pode virar um lame duck (“pato manco”) com dois meses de Casa Rosada. A expressão é mais usada nos Estados Unidos para qualificar presidentes que estão no fim do segundo mandato, com muitos desgastes acumulados e sem força política para liderar grandes projetos.
James Carville, o marqueteiro do ex-presidente norte-americano Bill Clinton, ensinou que, em campanhas eleitorais, o que funciona “é a economia, estúpido!”. Uma vez eleito, os mandatários precisam dominar a política – e, em alguns casos, a realpolitik. Com uma base restrita a 15% do Congresso argentino, Milei subestimou códigos básicos do poder e colhe insucessos em profusão. A realpolitik devorou seu governo.
O que será da gestão doravante? “Todos os instrumentos constitucionais estão sendo avaliados e vamos decidir pelo caminho mais correto ou pelo que tiver maior celeridade”, declarou o porta-voz presidencial Manuel Adorni. A consulta popular é uma alternativa arriscadíssima para o governo. A depender do tema, um plebiscito tem de ser convocado com 60 a 120 dias de antecedência. E se a popularidade de Milei minguar ainda mais no decorrer desses meses?
Além do mais, a vitória do “sim” no plebiscito precisa do respaldo do Congresso. Seja qual for a escolha da Casa Rosada, só resta ao presidente argentino encarar a política, ceder e negociar – buscar consensos mínimos que dê sobrevida à sua deplorável pauta. Ao que tudo indica, a Ley Ómnibus está jurada de morte.