Equipe de defesa de Israel em Haia insiste em negar o massacre que o mundo assiste ao vivo | Foto: AFP

No segundo dia de audiência da Corte Internacional de Justiça da ONU na sexta-feira (12), o assessor jurídico do Ministério das Relações Exteriores israelense, Tal Becker, disse que o pedido da África do Sul para deter o genocídio em curso em Gaza “não tem como se sustentar” e alegou que Israel bombardeia populações civis palestinas para se “defender”.

Ainda segundo ele, o que o mundo está presenciando em tempo real – e que uma defensora sul-africana descreveu como o ‘primeiro genocídio na história transmitido pelas próprias vítimas’ – não passa de “uma descrição deliberadamente descontextualizada e manipuladora da realidade das hostilidades atuais”.

Na véspera, em uma atuação descrita por juristas como “minimalista”, a África do Sul registrou a barbárie em curso em Gaza – 1% da população palestina morta por bombas e tiros, a maioria, crianças e mulheres; 85% forçada a deixar seus lares, rumo ao sul; sistema de saúde e de água potável destruídos; casas, escolas da ONU, padarias e mesquitas bombardeadas; punição coletiva com corte de água, comida, remédios e combustível; e um número espantoso de jornalistas, paramédicos e trabalhadores da ajuda humanitária assassinados. 

Ainda, como destacou o advogado sul-africano Tembeka Ngcukaitobi, as declarações dos mais altos escalões do governo de Israel “não são apenas assustadoras, mas também esmagadoras e incontestáveis”.

“Há aqui um elemento extraordinário: o líder político, os comandantes militares e as autoridades de Israel declararam sistematicamente a sua intenção genocida”, intenção que está enraizada “na ideia de que o inimigo não é a ala militar do Hamas ou o Hamas em geral, mas está embutido no tecido da vida palestina em Gaza”.

Entre esses, o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, o presidente Isaac Herzog, o ministro da Defesa Yoav Gallant, o Ministro da Segurança Nacional Itamar Ben Gvir, membros do Knesset, altos funcionários do exército e soldados de infantaria como perpetradores desta retórica. Uma das disposições da Convenção sobre o Genocídio é a proibição absoluta do incitamento ao genocídio.

O arauto israelense do apartheid perante a CIJ rejeitou a descrição da África do Sul do sofrimento em Gaza como “sem paralelo e sem precedentes”, dizendo que o que “é  incomparável é o grau em que o Hamas se entrincheirou na população civil”.

Por mais cínica que tal alegação seja, com ela Israel busca naturalizar seu genocídio contra os palestinos como se fosse “apenas” uma “caçada ao Hamas”, que estaria “entrincheirado na população civil” e, por isso, não existiria a “intenção genocida”.

Na véspera, a África do Sul já expressara que a Convenção não permite qualquer exceção à proibição absoluta de genocídio ou de incitação ao genocídio.

O professor de direito internacional Malcolm Shaw se prestou a ir a Haia asseverar que “tais evidências” – de genocídio e de “intenção genocida” – estavam faltando nos argumentos que a África do Sul apresentou um dia antes, “enquanto sua intenção de se defender certamente existe”.

Outros advogados a soldo de Israel atestaram que o regime estava protegendo os civis, de que seria prova a ordem para os palestinos abandonarem suas casas, ainda que voltem a bombardear quando vão para onde são mandados. É só ver a devastação em Khan Yunes, ao sul da Faixa de Gaza para onde disseram aos palestinos para irem.

Antes da audiência, outra jurista de Israel, Galit Raguan, após refutar a alegação de que Israel havia bombardeado hospitais, preventivamente argumento que se encontrou “evidências” de que o Hamas usou “todos os hospitais de Gaza” para fins militares – o que já foi desmentido até pela mídia ocidental.

Thomas MacManus, professor sênior de crime de Estado da Queen Mary University of London, disse à Al Jazeera que a CIJ provavelmente verá uma “enorme desconexão” entre o quadro que Israel pintou de sua preocupação humanitária com Gaza e “a realidade no terreno, onde as agências da ONU dizem que as pessoas estão passando fome, sem água e vendo ataques a hospitais, escolas e universidades”.

Ou, como a acusação da África do Sul assinalou na véspera, despejar bombas de meia tonelada contra áreas residenciais civis desmente qualquer suposta “preocupação humanitária”. E deixar dois milhões de seres humanos sem água, comida, remédios, combustível, acesso a hospitais, por três meses, não pode ser alegado como mera “caçada ao Hamas”.

A alegação sul-africana também incluiu declarações, dos mais variados órgãos da ONU, sobre Gaza estar sendo transformada “em um cemitério de crianças” (o secretário-geral, Antonio Guterres); Gaza está chegando ao ponto de “se tornar inabitável” (chefe da ajuda humanitária da ONU, Martin Griffis); e que 80% da população mundial que passa fome crítica “está em Gaza” (Programa Mundial de Alimentação). 15 relatores especiais da ONU e 21 membros de grupos de trabalho da ONU alertaram que o que está acontecendo em Gaza “reflete um genocídio em formação”.

Outra estratégia nauseante de Israel em Haia foi tentar descaracterizar a África do Sul, que derrotou e revogou o apartheid, como “cúmplice de terroristas”, em função da argumentação sul-africana à CIJ ter registrado que já são 75 anos de dominação colonial e apartheid sobre os palestinos, o que é a fonte de todo o conflito na Terra Santa.

BIDEN CÚMPLICE DE GENOCÍDIO

Em entrevista ao programa Democracy Now, a jurista Diala Shamas, que está em Haia acompanhando as audiências, lembrou que o Centro de Direitos Constitucionais apresentou uma ação contra o presidente Biden, o secretário de Estado, Blinken, e o secretário de Defesa, Austin, no tribunal federal da Califórnia, acusando-os de falhar em seu dever de prevenir um genocídio e cumplicidade em argumentos de genocídio, cuja audiência será no dia 26 de janeiro.

Biden tem fornecido armas, dinheiro e proteção no Conselho de Segurança da ONU ao regime que comete genocídio em Gaza e, nos termos da Convenção de Rejeição e Prevenção do Genocídio, é cúmplice. Além de escoltar o genocídio, com porta-aviões e submarinos na região.

“Como disse ontem o procurador sul-africano, trata-se, em última análise, de um teste à própria legitimidade do direito internacional e da ordem jurídica internacional. Se não podemos impedir um genocídio em desenvolvimento, então para que serve isso? Ela fez um argumento final convincente, citando um palestino, Munther Isaac, que falou seu tipo de sermões de Natal, perguntando ao mundo onde – você sabe, ‘O que você dirá onde estava quando um genocídio estava se desenrolando?’”, disse Shamas. Ela assinalou as repetidas declarações de apoio incondicional do governo dos EUA ao governo israelense, “apesar de três meses de ataques diários contra civis e declarações diárias mostrando uma intenção de destruir a população civil de Gaza, no todo ou em parte, a população palestina”.

Fonte: Papiro