Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

O bolsonarismo foi retirado do governo federal, porém uma das mais conhecidas autarquias nacionais ainda padece de seus resquícios.

No dia 9 de janeiro o Conselho Federal de Medicina (CFM) lançou uma “pesquisa” para “entender a percepção dos médicos brasileiros sobre a obrigatoriedade da vacinação contra a covid-19 em crianças de 6 meses a 4 anos e 11 meses”.

A própria ideia já revela que algo está fora do lugar, pois não revela os critérios para que algo nesse sentido seja realizado. Mas o caso chama a atenção uma vez que o Conselho foi envolvido em diversas polêmicas durante o auge da pandemia pela defesa de tratamentos contra a doença sem comprovação científica.

Agora os gestores acham de bom tom, para dizer o mínimo, observar o que a classe percebe sobre a obrigatoriedade da vacinação que se mostrou eficaz e permitiu que o Brasil e o mundo impedissem que a pandemia continuasse avançando.

Como forma de protesto, uma nota assinada por diversas entidades, entre elas a Associação Brasileira de Médicas e Médicos pela Democracia (ABMMD), repudia tal pesquisa e coloca que o CFM “atenta contra a saúde e a ciência”. Confira a nota ao final do texto.

Na mesma linha crítica, o médico infectologista Roberto da Justa, professor da Universidade Federal do Ceará e integrante do Coletivo Rebento – Médicos em Defesa da Vida, da Ciência e do SUS, denunciou na sexta-feira (12), o presidente do CFM, José Hiran da Silva Gallo, para que a pesquisa fosse imediatamente suspensa. A denúncia foi apresenta no Conselho Regional de Medicina do Distrito Federal (CRM-DF), onde Gallo tem CRM (registro do Conselho Regional de Medicina).

O médico Roberto da Justa, indica que a pesquisa de opinião proposta não trará benefício algum, nem para a categoria médica, nem para a sociedade. Por outro lado, ressalta que vacinação contra a covid-19 é uma estratégia comprovadamente eficaz e segura, inclusive em crianças.

Ele ressalta que o CFM, deveria substituir esta pesquisa por campanhas de estímulo à vacinação para covid-19 em crianças, reforçando a importância da vacinação no SUS como um direito à saúde.

Roberto da Justa. Foto: Arquivo Pessoal

Além disso, lembra que a pesquisa não traz nenhum critério científico e é possível fraudá-la.

“A “pesquisa” não possui metodologia adequada. A plataforma para a resposta é vulnerável, é possível fraudar os resultados, qualquer pessoa pode responder quantas vezes quiser no lugar de qualquer médico ou médica. Os códigos de validação, que deveriam ser sigilosos, podem ser facilmente revelados. Ou seja, há uma quebra de sigilo muito grave, ferindo preceitos éticos e a própria LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais). Em outras palavras, a “pesquisa” está inválida, seus resultados serão inúteis e não poderão ser divulgados. Mantê-la em curso incorre em infração ética e legal, portanto precisa ser suspensa imediatamente”, reforça Justa.

A médica infectologista e membro do colegiado nacional da ABMMD, Ceuci Nunes, compartilha do entendimento que a pesquisa não tem base metodológica e que mesmo se for uma enquete não cabe a autarquia realizá-la.

Outro ponto de observação é sobre a desconfiança que uma atitude dessa lança sobre a vacinação.

Ceuci Nunes. Foto: Arquivo Pessoal

“Quando o conselho lança uma questão dessa, lança um questionamento sobre a vacina, sobre o Ministério Da Saúde e sobre a ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), que prevê a obrigatoriedade de vacinação de crianças. Então, já é uma coisa muito ruim”, ressalta Nunes.

Ela ainda explica que a medicina não é feita pela opinião dos médicos, mas sim baseada na ciência e sob indicação de especialistas em cada área em um comitê.

“O que o conselho vai fazer com essa opinião, se a maioria acha que não deve ser obrigatório [a vacina]. O conselho vai entrar contra o ECA? O Ministério da Saúde quando faz a inclusão de alguma vacina no programa nacional de imunização, como é o caso da vacina de covid-19 para criança, escuta um comitê técnico assessor que é composto por médicos especialistas da área de imunização, de pediatria, de infectologia etc. Os dados da vacina que esse comitê utiliza são muito robustos, de que a vacina é segura”, revela a médica infectologista.

Arruda Bastos. Foto: Arquivo Pessoal

Compartilha dessa visão o médico sanitarista e professor de medicina Arruda Bastos, que é ex-Secretário da Saúde do Ceará e Coordenador da Secretaria Geral da ABMMD.

“Classifico a pesquisa lançada pelo CFM como tendenciosa, anticientífica e contraproducente, pois as perguntas formuladas têm o potencial de alimentar uma falsa controvérsia em torno da vacina de covid-19, baseada em negacionismo médico-científico e teorias da conspiração”, critica Bastos.

Código de Ética

A denúncia feita pelo médico infectologista Roberto da Justa coloca que o Conselho Federal feriu um princípio e dois artigos do Código de Ética Médica.

“O CFM é o defensor maior do Código de Ética Médica. Infelizmente, com a promoção desta dita “pesquisa”, está infringindo princípio fundamental e os artigos 100 e 103 do próprio Código de Ética Médica, e o seu representante deve responder por isso. O CFM é uma autarquia pública federal e está em flagrante descumprimento de suas prerrogativas legais. Este fato deveria ser investigado pelo Ministério Público Federal”, disse o médico.

Os artigos e o princípio a que ele se refere são: Princípio Fundamental XXIV (“Sempre que participar de pesquisas envolvendo seres humanos ou qualquer animal, o médico respeitará as normas éticas nacionais, bem como protegerá a vulnerabilidade dos sujeitos da pesquisa”); artigo 100 ( “Deixar de obter aprovação de protocolo para a realização de pesquisa em seres humanos, de acordo com a legislação vigente”); e 103 (“Realizar pesquisa em uma comunidade sem antes informá-la e esclarecê-la sobre a natureza da investigação e deixar de atender ao objetivo de proteção à saúde pública, respeitadas as características locais e a legislação pertinente”).

“Inúmeros pleitos”

A repercussão sobre a pesquisa fez o CFM se pronunciar em uma nota. Em oito tópicos, que podem ser conferidos na íntegra aqui, o Conselho justifica seus procedimentos.

Em um dos pontos da nota do CFM é colocado que: “A decisão decorre de inúmeros pleitos encaminhados à autarquia buscando conhecer o posicionamento do CFM sobre esse tema, pois a bula da vacina disponibilizada pelo fabricante condiciona sua venda à prescrição médica”.

Segundo Justa, esta alegação não faz sentido e as respostas da nota são piores que a própria pesquisa.

“A vacina contra covid está aprovada pela ANVISA e foi incluída no Calendário Nacional de Vacinação. É segura e eficaz. Passou a fazer parte de uma política pública e vem sendo aplicada em campanhas de vacinação no mundo todo. A nota toda do CFM é pior que a própria iniciativa da dita “pesquisa”, diz.

Para o médico, a iniciativa e sua justificativa “expressam a postura antivacinal, anticiência e negacionista do sistema Conselho de Medicina nos últimos anos”.

Para ele, no caso de a justificativa ser atender a classe, que se apresente quais são as reivindicações.

“Quais os critérios deveriam definir uma decisão baseada em pedidos, uma vez que “inúmeros pleitos” é algo genérico e carece de comprovação? Quais pleitos? Que o CFM publicize os “inúmeros pleitos”, questiona.

Cobertura sem vacina de covid-19?

Ao final da nota da autarquia é dito: “O CFM ressalta à população e aos médicos que empenha total apoio às ações empreendidas para ampliar a cobertura de vacinas que ajudam na prevenção e combate a doenças, como poliomielite, sarampo, meningite, rubéola e tuberculose, disponibilizadas dentro do Programa Nacional de Imunizações (PNI), considerado o maior do mundo em sua modalidade.”

Ceuci também enxerga que a nota só pirou as coisas e neste ponto específico trouxe outra polêmica.

“Falam da importância de vacinas para várias doenças e não incluem covid-19. Portanto é colocado mais um motivo para as pessoas desacreditarem da vacina, inclusive os próprios médicos, que muitas vezes não tem um estudo mais aprofundado sobre o tema”, alerta.

O Conselho, que representa mais de 560 mil médicos, é uma potência em representatividade, argumenta a médica. Por isso deveria utilizar os holofotes para combater o negacionismo, com orientação aos médicos e para a sociedade, uma vez que houve queda das taxas vacinais em todas as frentes nos últimos anos por conta de campanhas de desinformação, completa

Reacionarismo

Nas entranhas dessa perspectiva atrasada que ainda remonta o governo passado o ‘bolsonarismo’ aparece como fantasma.

“Evidentemente o conselho está seguindo a ideologia negacionista da vacina. Muitos conselheiros são bolsonaristas, participaram de manifestações em frente aos quartéis, então o Conselho está impregnado com essa ideologia do negacionismo”, dispara a médica Ceuci Nunes.

“A pesquisa revela a persistência de elementos reacionários, de extrema direita e alguns bolsonaristas no Conselho, uma vez que a chamada “pesquisa” não atende aos critérios científicos adequados. As perguntas enviesadas e a falta de embasamento científico indicam uma abordagem que vai contra os princípios da ciência e da saúde pública”, completa o médico sanitarista Arruda Bastos.

CFM atenta contra a saúde e a ciência

Confira a nota na íntegra a seguir:

Nota de repúdio: Mais uma vez, o CFM atenta contra a saúde e a ciência

As entidades abaixo subscritas vêm a público expressar seu repúdio à iniciativa da atual gestão do Conselho Federal de Medicina de promover uma descabida pesquisa de opinião para médicos acerca da vacina de Covid- 19.

Sob o pretexto de “entender a percepção dos médicos brasileiros sobre a obrigatoriedade da vacinação contra a Covid- 19 em crianças de 6 meses a 4 anos e 11 meses”, o CFM elenca perguntas contraproducentes e de caráter claramente enviesado. A pesquisa parece não ter outro propósito senão o de alimentar uma falsa controvérsia em torno da vacina para Covid- 19, fundada em puro negacionismo médico-científico e teorias da conspiração. Cabe esclarecer que a   referida vacina foi incorporada pelo Programa Nacional de Imunizações (PNI) ao calendário vacinal da criança, baseado em decisão da Câmara Técnica Assessora em Imunização (CTAI) do Ministério da Saúde. Trata- se de um órgão técnico, composto por especialistas, que analisam de forma sistemática e transparente os dados de segurança, imunogenicidade, eficácia e farmacovigilância antes de emitir suas recomendações.

No caso da vacina de Covid- 19, foi bem demonstrado que os benefícios suplantam quaisquer riscos, inclusive para a faixa etária em questão. Fomentar questionamentos em torno da obrigatoriedade de quaisquer vacinas do PNI, além de não ser ético, contraria o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente, segundo o qual as vacinas do PNI são obrigatórias, sendo um direito básico da criança e um dever do Estado.

Esperava- se, ao contrário, que o CFM cumprisse o papel de reforçar junto à sociedade as recomendações das entidades técnicas e científicas, entre as quais as sociedades médicas, em um contexto de múltiplos esforços coordenados para retomar as altas taxas de vacinação no Brasil.

Portanto, consideramos desproposital falar em “direito” dos pais ou responsáveis, tampouco em “autonomia médica”, como induz a tal pesquisa de opinião, quando o que está em jogo é o direito da criança à proteção conferida pelas vacinas. E quem compete atestá-las são as autoridades sanitárias.

Neste ponto, indagamos que uso fará o CFM do resultado de sua tendenciosa pesquisa? O potencial uso de “dados” para questionar a política pública e a ciência a partir de crenças pessoais e pesquisas de opinião não tem lastro no melhor interesse social e é irresponsável.

Ademais, ao se autointitular “pesquisa”, também enseja indagação em relação à aprovação em comitê de ética em pesquisa, o que aparentemente não ocorreu, gerando insegurança nos respondentes. Assim sendo, temos mais um motivo para a sua imediata suspensão.

Esperamos, por fim, que o CFM retome seu relevante papel de zelar pelas boas práticas médicas, atuar em prol da Saúde e da Medicina, pautado pela Ciência, e que abandone, de uma vez por todas, pautas negacionistas que tanto mal fizeram à população brasileira nos anos recentes.

Associação Brasileira de Médicas e Médicos pela Democracia – ABMMD

Associação Brasileira de Saúde Coletiva – Abrasco

Centro Brasileiro de Estudos de Saúde – Cebes

Sociedade Brasileira de Bioética – SBB

Frente pela Vida

Sociedade Brasileira de Bioética – SBB

Rede Nacional de Médicas e Médicos e Populares – RNMMP

Coletivo Rebento