Vladimir Putin na entrevista coletiva deste final de ano | Foto: Sputnik/Aleksandr Kazakov

Em seu “linha direta” com os cidadãos russos, uma entrevista anual ao vivo com o presidente Vladimir Putin, que neste ano incluiu as perguntas da imprensa estrangeira, ele destacou que “a existência sem soberania é impossível para a Rússia”, disse que aqueles que esperavam que o país desabasse sob as sanções estão “muito desapontados” e que a paz na Ucrânia será possível após “desnazificação, desmilitarização e um status neutro”.

Ele revelou, ainda, que a indústria manufatureira russa terá um crescimento este ano de 7,5%, os salários reais aumentaram 8%, com um desemprego de 2,9%, e assinalou que as relações Rússia-China são cruciais para a estabilidade global.

Desde 2001, existe essa tradição de que os cidadãos dirijam perguntas e pedidos ao presidente, que responde ao vivo, após uma seleção entre, no caso deste ano, 2,5 milhões de mensagens. Esta semana, Putin confirmou que será candidato à reeleição nas eleições de 2024.

Duas surpresas este ano. A primeira, quando o porta-voz do Kremlin indicou que quem iniciaria as perguntas da mídia internacional seria o “The New York Times”, foi interrompido por Putin, que chamou a agência de notícias chinesas Xinhua.

A outra, uma pergunta feita por uma versão digital de Putin, um dublê criado por Inteligência Artificial, que dirigiu uma pergunta ao presidente russo exatamente sobre IA e redes neurais. Putin teve a oportunidade de dialogar com seu dublê e depois brincou que tem um cão que consegue diferenciar quem é quem pelo olfato. O que serviu, também, para mostrar os avanços da Rússia nessa fronteira tecnológica.

À Xinhua, Putin disse que as relações sino-russas são cruciais na manutenção da estabilidade global, acrescentando que o nível de interação entre os dois países é “sem precedentes”.

Putin observou ainda que a Rússia e a China estão diversificando suas relações, dizendo que os dois países estão desenvolvendo relações em áreas como infraestrutura e setor de alta tecnologia. “E continuaremos a fazê-lo”, acrescentou.

Sobre a guerra em curso na Ucrânia e as relações com os EUA e o Ocidente, Putin disse que o “desejo desenfreado de rastejar em direção às nossas fronteiras, levando a Ucrânia para a Otan, tudo isso levou a esta tragédia (…) Eles nos forçaram a essas ações.”

Ele acrescentou que os objetivos da Rússia na Ucrânia permanecem inalterados e não haverá paz até que sejam alcançados. Respondendo a outra pergunta, Putin disse que o gasoduto Nord Stream provavelmente foi explodido pelos norte-americanos.

Sobre a situação em Gaza, Putin chamou a “criar as condições fundamentais para a paz palestino-israelense” e defendeu a criação de um Estado palestino independente com capital em Jerusalém Oriental.

Ele lembrou ainda que o secretário-Geral da ONU classificou a Faixa de Gaza como “o maior cemitério para crianças do mundo”. “Precisamos salvar as pessoas em Gaza. Precisamos fornecer apoio humanitário massivo às pessoas”.

Ele também apontou para o fato de que algumas nações estavam bloqueando as decisões do Conselho de Segurança da ONU sobre a situação em Gaza. Ele alertou que a ONU perderá sua influência se “nenhuma decisão for tomada”. Os EUA vetaram várias resoluções que visavam um cessar-fogo no enclave palestino.

A última questão do “linha direta” foi esta, registrou o jornal Svpressa: o que o Putin de hoje desejaria ou diria a si mesmo há um quarto de século. “Você está no caminho certo, camarada”, respondeu o presidente com uma citação de Lênin.

A RÚSSIA SEGUE DE PÉ APESAR DAS SANÇÕES

Em 2023, a economia russa se recuperou totalmente das perdas com as sanções e deu um passo em frente bastante sério, disse o presidente Putin. Até ao final de 2023, o PIB do país crescerá 3,5%, a indústria de transformação 7,5% – pela primeira vez em muito tempo -, o investimento em ativos fixos aumentará 10% e os salários reais dos cidadãos, 8%, ele assinalou.

Ainda, a dívida externa pública diminuiu de 46 bilhões de dólares para 32 bilhões de dólares. No conjunto, a indústria crescerá 3,5%, enquanto a presença de marcas nacionais no mercado nacional cresceu mais de 30%. Os lucros das empresas russas crescerão quase 25% este ano.  Visando ampliar o mercado interno, o salário mínimo será aumentado em 18,5% em 1º de janeiro. O desemprego é de 2,9%, segundo Putin.

A colheita na Federação Russa este ano é novamente um recorde, mais de 150 milhões de toneladas de grãos, a segurança alimentar na Rússia está garantida, acrescentou o presidente russo.

Como registrou Putin, aqueles que achavam que na Rússia tudo ia desabar sob as quase 18.000 sanções decretadas por Washington e Bruxelas, estão “muito decepcionados”. “Nada desabou”, ele enfatizou.

 As sanções – inclusive contra a exportação do petróleo russo – foram seguidas pela saída de muitas empresas ocidentais da Rússia, bem como o congelamento de metade das reservas russas, de US$ 300 bilhões e os sabe-tudo previam uma depressão econômica, da ordem de 10-25% do PIB.

No entanto, o declínio real no ano passado foi de apenas 2,1% – menos profundo do que no ano pandêmico de 2020 (2,7%) e do ano de crise de 2009 (7,8%). Como registrou Putin, a resistência da Rússia às restrições externas surpreendeu muitos, tanto no estrangeiro como dentro do país.

DESDOLARIZAÇÃO EM MARCHA

Segundo Putin, os países ocidentais “deram um tiro no pé” com as suas restrições ao setor financeiro, uma vez que os pagamentos em dólares e euros se tornaram agora mais arriscados, e estar vinculado a eles pode ameaçar graves consequências socioeconômicas e perda de recursos e soberania.

Como esclareceu o chefe de Estado, se em 2021 a Rússia servia aproximadamente 87% das suas exportações em dólares e euros, agora este número é de apenas 24%.

Ao mesmo tempo, a parcela dos pagamentos em rublos aumentou de 11% para 40% e em yuans – de 0,4% para 33%.

Ou seja, de 87% das transações comerciais em dólares e euros, a Rússia passou a ter 73% em rublos e yuans.

“Quanto mais usarmos a moeda nacional nos cálculos econômicos, nos cálculos financeiros, melhor. Isto aumenta a nossa soberania e capacidades”, enfatizou Putin.

Como observara recentemente o ministro russo das Finanças, Anton Siluanov, o Ocidente “cortou o seu próprio ramo” sobre o qual foi construído todo o sistema de pagamentos internacionais.

Juntamente com a Rússia e a China, outros países estão cada vez mais começando a fazer pagamentos em moedas nacionais ou de países amigos.

Putin também comentou a recente decisão das autoridades de reforçar os controles cambiais na Rússia, em razão da restauração das importações e escassez de divisas, o que levou a fortes flutuações nas taxas de câmbio. Como resultado, o presidente obrigou exportadores a devolver pelo menos 80% dos ganhos em moeda estrangeira do exterior e a trocar pelo menos 90% desses fundos por rublos.

ESTABILIDADE E RESILIÊNCIA

Como destacou Putin, a Rússia demonstrou uma enorme estabilidade e resiliência. No “linha direta”, ele aproveitou para esclarecer algumas preocupações dos cidadãos russos. Por exemplo, se haveria uma segunda mobilização por causa da operação militar especial na Ucrânia.

Putin disse que há cerca de 617.000 soldados russos atualmente na Ucrânia. Cerca de 486.000 pessoas se inscreveram até agora voluntariamente como soldados contratados, além das 300.000 pessoas convocadas no ano passado. “E o fluxo de nossos homens prontos para defender os interesses da Pátria não diminui, mil e quinhentos por dia. Hoje não há necessidade de uma nova mobilização.”

As Forças Armadas da Ucrânia não tiveram sucesso em lugar nenhum com a contra-ofensiva, registrou Putin. “Quase ao longo de toda a linha de contacto, as nossas forças armadas, digamos modestamente, estão melhorando sua posição. Os militares russos em Krynki sofreram perdas módicas, enquanto o inimigo sofreu dezenas de mortos. Kiev está pressionando o seu povo para o extermínio; os próprios militares ucranianos dizem que este é um caminho de mão única”.

Putin descreveu o conflito entre Moscou e Kiev essencialmente como uma “guerra civil” entre irmãos, instigada pelos EUA e seus aliados. A Rússia passou décadas tentando construir relações normais com a Ucrânia “a qualquer custo”. Ele classificou os últimos acontecimentos como uma “grande tragédia”.

“Depois do golpe de Estado de 2014, ficou claro para nós que não teríamos mais permissão para construir qualquer tipo de relações normais com a Ucrânia”, disse Putin. O presidente acrescentou que Washington admitiu publicamente ter gasto US$ 5 bilhões no golpe de Maidan.

SOBERANIA ECONÔMICA

O presidente considerou como prioridade garantir a segurança e a soberania da Rússia nas áreas da economia, finanças e tecnologia. Sobre isso, o acadêmico Georgiy Ostapkovich, da Escola Superior de Economia da Universidade Nacional de Pesquisa, disse ao RT que “soberania econômica é a criação de bens de qualidade dentro do país. Para isso, é necessário promover a política de substituição de importações. Precisamos desenvolver tecnologia para podermos criar produtos de alta tecnologia que sejam competitivos nos mercados mundiais”. Ele acrescentou que, se falamos de soberania financeira, estamos falando em “focar na própria moeda e aumentar gradualmente o comércio em moedas nacionais com países amigos”.

Putin disse, ainda, que 96% dos cidadãos russos consideram “a harmonia inter-religiosa e interétnica em nosso país uma enorme vantagem competitiva em relação a outras partes do mundo”. Ele assinalou ainda que no país há 10 milhões de imigrantes.

OS OVOS ESTÃO CAROS, VLADIMIR VLADIMIROVICH!

Outra pergunta que chamou a atenção, foi a feita por uma aposentada, Irina Alexandrovka, que, se dirigindo a “Vladimir Vladimirovich”, como ele é tratado pelo povo, perguntou porque a dúzia de ovos estava tão cara:

“Tenha pena dos aposentados. Quero entrar em contato com você para que você possa influenciar. Uma dúzia de ovos – de 180 a 220 rublos. Como chegamos a esses preços?”

“Lamento e peço desculpas por isso, é uma falha no trabalho do governo”, respondeu Putin, depois de relatar que já tinha perguntado ao Ministro da Agricultura sobre como iam os ovos, e recebido com resposta que “iam bem”.

O problema, explicou Putin, é que num contexto de aumento geral da renda e da demanda do consumidor no país o consumo do produto aumentou, mas o volume de sua produção não.

Ao mesmo tempo, os fornecimentos adicionais de importação não foram fornecidos em tempo hábil. O aumento de preços chegou a 40%.

O presidente disse que há a promessa de que a situação será corrigida num futuro próximo, com o aumento da importação de ovos da Turquia, da Bielorrússia e dos países da Comunidade Euroasiática.

PINGA FOGO

As relações com os europeus também vieram à baila. Perguntado sobre porque havia parado de falar com o presidente francês Emmanuel Macron, Putin disse que a Rússia está pronta para “continuar a interagir com a França. Mas a certa altura o Presidente francês interrompeu relações conosco. Não fomos nós que paramos. Eu não parei, foi ele quem parou. Caso haja interesse, por favor, estamos prontos. Se não houver interesse, nós sobreviveremos”.

Mais adiante, ele observou que os países da União Europeia “perderam a sua soberania e estão tomando decisões em seu detrimento”. Quase todos os líderes europeus – ele acrescentou – se comportam “exteriormente” como o herói De Gaulle, mas, na prática, “agem como o colaboracionista Pétain”.

Sobre a proposta do novo presidente da Argentina, Javier Milei, de adotar o dólar como a moeda da Argentina, diante da crise vivida pelo país, Putin advertiu que, “obviamente, é uma perda significativa de soberania”,  

Em resposta ao New York Times sobre o destino dos norte-americanos presos na Rússia Paul Whelan e Evan Gershkoviche, Putin assinalou que, quanto à possível extradição, a Rússia quer chegar a um acordo, que seja aceitável para ambas as partes (Há vários cidadãos russos virtualmente sequestrados e levados para cárceres norte-americanos ao longo dos últimos anos).

Whelan e Gershkoviche foram acusados de espionagem, sendo que o último oficialmente é jornalista do Wall Street Journal.

Putin disse também que a Rússia está pronta para construir relações com os Estados Unidos, é um país importante e necessário, mas apontou que “não existem” condições fundamentais para restaurar as relações entre a Federação Russa e os Estados Unidos; “eles devem primeiro começar a respeitar os outros”.

PERVERSÃO DAS IDEIAS DE COUBERTIN

Sobre as sanções decretadas pelo Comitê Olímpico Internacional (COI) contra a Rússia, Putin as classificou de “completa perversão das ideias de Coubertin. Se eles não mudarem seu comportamento, eles enterrarão o movimento olímpico”.

Sobre os Jogos Olímpicos de Paris, em 2024, Putin disse que não é contra os russos competirem, mas que o país deve ponderar se deve, se o evento for projetado para cortar os melhores atletas russos e retratar nas Olimpíadas que o esporte russo está “moribundo”. “Ainda precisamos analisar cuidadosamente”.

O Comitê Olímpico Internacional (COI) disse na semana passada que atletas qualificados da Rússia e Belarus – que haviam sido proibidos de competir internacionalmente após a invasão da Ucrânia – poderiam participar dos Jogos como neutros, sem bandeiras, emblemas ou hinos.

Fonte: Papiro