O mercado se surpreende com o PIB, porque não há democracia nas vozes que se ouve
Previsões econômicas não passam de manipulação de índices por interesses específicos para efeitos de especulação política.
O ano de 2023 surpreendeu o mercado financeiro brasileiro, contrariando projeções iniciais e revelando a complexidade por trás das análises econômicas. O Produto Interno Bruto (PIB) do país, ao invés de alcançar modestos 0,8%, como previam agentes financeiros, surpreendeu ao atingir a projeção de 3%. O economista Paulo Kliass, em entrevista, explica os fatores por trás dessas surpreendentes reviravoltas no cenário econômico.
Kliass desconstrói a ideia de “mercado” como uma entidade única e pensante. Ele destaca que o mercado não é uma pessoa, mas sim uma conjunção de agentes econômicos, envolvendo tanto empresas quanto consumidores. As projeções do mercado, frequentemente divulgadas por veículos como Valor Econômico, são moldadas por representantes dos grandes grupos econômicos, oligopólios e instituições financeiras.
O economista destaca a Pesquisa Focus, realizada pelo Banco Central, como uma ferramenta que embasa essas projeções. Nela, 160 dirigentes de bancos e instituições financeiras respondem perguntas sobre diversas variáveis econômicas, influenciando decisões políticas e estratégias de investimento. Kliass alerta para o viés político dessas respostas, uma vez que são formuladas por aqueles com interesses específicos, muitas vezes ligados à austeridade fiscal. Gente que faz lucro com os serviços financeiros da dívida pública, e, portanto, precisam que o governo tenha dinheiro para pagar e pague sempre mais.
O ano de 2023, segundo Kliass, foi marcado por projeções equivocadas devido a um viés político intrínseco nas análises. A previsão inicial de crescimento de 0,8% estava ancorada na expectativa de continuidade das políticas de austeridade defendidas por Paulo Guedes, ex-ministro da Fazenda de Jair Bolsonaro (PL). No entanto, o cenário mudou quando, diante da possibilidade de derrota eleitoral, Bolsonaro adotou medidas de gastos, rompendo com o teto de gastos e desencadeando uma série de eventos macroeconômicos.
O economista destaca a importância da PEC da Transição, articulada por Lula e Haddad em dezembro de 2022, como um ponto crucial para o aumento do auxílio emergencial e outros investimentos, proporcionando um fôlego à economia. Essas ações, muitas vezes não previstas nas projeções iniciais, resultaram em um crescimento próximo ou superior a 3% em 2023, quatro vezes maior do que inicialmente estimado.
Kliass ressalta a necessidade de democratizar o processo de projeções econômicas, dando voz a economistas (e instituições econômicas) que não seguem a cartilha financeira tradicional. Ele critica a falta de responsabilização por equívocos nas projeções do mercado e defende a inclusão de centros de pesquisa de universidades e instituições públicas nesse processo.
O economista faz um oportuno paralelo com o ano de 2002, destacando que, assim como naquela época, as projeções catastróficas não se concretizaram. Ele enfatiza a necessidade de reconhecer a incapacidade do mercado em fazer projeções precisas, considerando a economia como uma ciência social sujeita a imponderáveis.
Leia trechos da esclarecedora entrevista do economista sobre o complexo assunto:
Omer Cado e a Pesquisa Focus
O que significa concretamente quando a gente fala o mercado analisa, o mercado pensa, o mercado projeta? Porque o que se faz é dar uma espécie de “humanizada” pra essa figura que, na verdade, é um fenômeno: o mercado. O mercado pensa, o mercado analisa, o mercado pressiona, o mercado sugere, o mercado exige… Um velho amigo dizia que ia criar um personagem chamado Omer Cado, para personificar este fenômeno.
Se quiser voltar lá pelos pais da economia política moderna, — o Adam Smith, o Ricardo —, o mercado é uma conjunção dos chamados agentes econômicos. Você tem os agentes da oferta e você tem os agentes da demanda. Você tem as empresas e você tem os consumidores. Então, não existe o mercado falando apenas por um lado, que são as empresas.
Jornais como Valor Econômico e editorias de economia quando falam que o mercado projeta índices, essa é uma avaliação que é compartilhada pelos principais representantes dos grandes grupos econômicos, dos oligopólios, etc. É usada pelo Banco Central para estabelecer as suas metas e as suas definições de política monetária, por exemplo, resultado de uma pesquisa semanal que o Banco Central faz, chamada Pesquisa Focus.
Quem responde às perguntas dessa pesquisa — quais são as suas avaliações, sobre o PIB, sobre a taxa de juros, sobre a inflação, etc. —, são 160 dirigentes de bancos e instituições financeiras.
Esse pessoal estabelece o que acham que vai ser o futuro próximo da economia brasileira, e isso vira uma verdade, uma profecia. O mercado pensa.
Apenas uma aposta política
É como as agências de risco, que acabam projetando equívocos. As agências de risco, assim como os bancos, individualmente, têm seus departamentos econômicos, com gente muito bem paga para fazer os seus modelos e previsões. Agora, essa projeção institucional e “oficial”, muitas vezes não passa de aposta política.
Não é uma surpresa o que aconteceu ao longo do ano de 2023, porque tem muito de aposta política e pouco de capacidade efetivamente de fazer previsão. É muito difícil fazer previsão com segurança na questão da política econômica, porque justamente ao contrário do que esse pessoal pensa, a economia não é uma ciência exata, que você tem um modelinho bonitinho: quanto eu preciso colocar de cimento, de ferro para construir essa ponte, dependendo do tipo de transporte de carga, se é trem, se é caminhão, que vai passar por lá?
A economia não funciona assim. A economia é uma área do conhecimento do campo das ciências sociais, das ciências humanas. Por isso que ela é adjetivada como economia política. É óbvio que existe todo esse instrumental da estatística, que evoluiu bastante, pra tentar fazer previsões. Mas tem o imponderável, porque essas previsões são nada mais do que uma repetição do passado. Muito certamente, o futuro não vai ser uma mera repetição do passado.
O desespero de Bolsonaro
Veja, o que são as previsões para 2023. Elas são as previsões que esse pessoal fazia ao longo de 2022. Então eles identificavam o governo Bolsonaro, Paulo Guedes, austeridade, teto de gastos, e apostavam politicamente que determinada medida ia ter continuidade. Com isso, diziam lá atrás, que em 2023 a economia brasileira ia, no máximo, crescer 0,8%. Essa era a previsão corrente na época.
Mas por quê? Primeiro, por esse problema do viés político. Segundo, porque eles contavam que ia continuar funcionando no caso da economia brasileira o discurso do Paulo Guedes, que ao longo de 2022 era um processo muito pesado de austeridade, de cortes de gastos, de cortes de despesas, etc.
No entanto, ao longo do ano de 2022, quando foi definida a candidatura do Lula, Bolsonaro começou a ficar desesperado, por perceber que poderia perder a eleição, e deu um cavalo de pau naquilo tudo que o Paulo Guedes estava pregando e praticando. Veio um festival de gastança. Uma gastança desesperada, mas que teve efeitos macroeconômicos. Ele aumentou o auxílio emergencial, ofereceu empréstimo consignado, distribuiu as emendas parlamentares do orçamento secreto, entre outra série de medidas, com claro interesse eleitoral.
Isso acabou tendo efeito macroeconômico, e, na prática, ele rompeu com o teto de gastos. Chega ao final de 2022, esse pessoal que faz as avaliações diz: realmente não tem jeito, perdemos, mas o teto de gastos continua e o governo de 2023 não vai ter como gastar.
Quando o governo não gasta, promove a austeridade e dificulta o crescimento, ao reforçar uma tendência à estagnação ou mesmo à recessão.
Recursos, despesas, gastos e investimentos
A novidade é que, em dezembro de 2022, o Lula eleito e o Fernando Haddad, ministro da Fazenda, antes mesmo da posse, articulam a PEC da Transição, que viabiliza recursos orçamentários que não estavam previstos na Lei Orçamentária que o Paulo Guedes tinha preparado e o Bolsonaro tinha mandado ao Congresso. Assim, ocorre o lançamento de recursos e despesas, que não estavam previstos, o que dá um certo fôlego à economia.
Isso permitiu aumentar e estender os auxílios da Assistência Social, reajuste de salário mínimo com um pouquinho além da reposição da inflação e um pouco de reajuste do PIB. Houve uma negociação importante com os servidores públicos, e os salários e vencimentos foram reajustados.
Tudo isso criou condições para que a atividade econômica não ficasse restrita àquela projeção que o pessoal fazia ao longo de 2022. 2023 correndo, a cada mês que passava, os caras caíam na real e diziam: “realmente, 0,8% está muito baixo, vai ser mais”.
O IBGE soltava a previsão trimestral, depois a previsão semestral, e se confirmou. Vai sair oficialmente no começo do ano que vem, mas em 2023 a gente vai ter um crescimento próximo, ou até superior a 3%. É pouca coisa, mas é quatro vezes maior que a previsão inicial.
Naturalizando o fiscalismo
Isso serve para a gente colocar, com bastante cautela, essas “previsões do mercado”, entre aspas. Veja que os caras não são responsabilizados por nada desses equívocos. Com certeza, nas suas empresas, eles não fizeram essas previsões pra resolver os seus modelos, pra pensar a rentabilidade dos seus ativos, taxa de juros dos empréstimos, etc. Senão, eles iam quebrar a cara.
Agora, para efeitos externos, eles vão no Banco Central, 160 “queridinhos” respondem à pesquisa com um forte viés político.
Por isso que a gente está, há muito tempo, sugerindo que é importante ter previsão econômica, ninguém é contra. Mas vamos democratizar o acesso das respostas. Bota os economistas que não rezam pela cartilha do financismo pra falar. Bota os centros de pesquisa das universidades e das instituições públicas para participar desse universo de quem pretende fazer alguma projeção pra economia futura.
São interesses de grupos que têm a sua atividade econômica dependendo da austeridade. Porque um dos elementos da austeridade é retirar recursos orçamentários para dirigir, sem nenhum problema, para o pagamento de juros da dívida pública. Essa é a mágica do adjetivo “primário”.
Ninguém discute superávit ou déficit fiscal, stricto senso. A gente está há 30 anos numa armadilha — imposta inclusive já na década de 1980, pelo próprio Fundo Monetário Internacional (FMI) ao Brasil e aos países em desenvolvimento —, de pensar superávit, déficit ou equilíbrio primário. Porque pela definição própria da contabilidade pública, o primário é tudo aquilo que não é financeiro. Por exemplo, as despesas financeiras não estão para ser controladas, quando você quer gerar um superávit primário. Ou seja, controla saúde, educação, previdência, assistência, emergência, segurança pública, saneamento, salário, mas não mexe na despesa financeira.
Ao longo dos últimos 12 meses, o Banco Central soltou há uns 10 dias, que o Brasil gastou R$ 720 bilhões do orçamento para pagar juros. Só que ninguém fala que tem que estabelecer um teto para isso, que isso é gastança, isso é imoral. Isso aí é fundamental para o que eles chamam de respeitar os contratos com a banca, com o sistema financeiro.
Contratos sociais de garantir salários dignos, previdência social reajustada, condições de saúde minimamente adequadas, educação, etc, não precisam ser respeitados. Isso pode ser cortado através de teto de gastos, contingenciamento, limites, essa coisa toda.
A estratégia do medo
Este resultado que é quatro vezes maior que o previsto, é resultado dessa contradição, entre uma capacidade frágil de fazer previsões econômicas, por um lado, porque não é uma maquininha de contabilidade seca, afinal, eles jogam os números e o resultado sai no dia seguinte, ou no instante seguinte, misturado com uma avaliação política totalmente equivocada.
A gente pode fazer um paralelo do que aconteceu exatamente 20 anos atrás. Em 2002, foi um ano eleitoral, como 2022, e você tinha então a possibilidade concreta do Lula ganhar a eleição para começar a governar em 2003.
A campanha foi aquele jogo pesadíssimo, de que se o PT ganhasse o Brasil ia quebrar. Isso se refletia não apenas nas projeções equivocadas, mas também na especulação sobre a taxa de câmbio. O dólar chegou a bater níveis recordes de especulação. Na época, chegou a R$ 4, que era considerado um absurdo.
O que aconteceu? São 20 anos passados, o país mudou, mas do ponto de vista das projeções e da realidade, todo aquele pessoal — que fazia aquelas previsões catastróficas, as projeções de que o Brasil ia quebrar, que a inflação ia voltar —, ao longo de 2003, tiveram que ir refazendo, na mesma pesquisa Focus, — que já existia naquela época do Banco Central. Não houve nenhuma humildade, obviamente. Ninguém disse: eu errei, porque as respostas ficam com sigilo nos 160 respondentes, mas a coisa vai se ajeitando. O Brasil voltou a crescer, não quebrou, a inflação não estourou, pelo contrário. O Palocci fez um mega ajuste para conseguir superávit maior, inclusive do que na época do Pedro Malan.
Uma aposta política que eles faziam, durante o ano, da projeção de que em 2023 a coisa ia ser pior ou tão ruim quanto em 2022, e, ao longo do ano de 2023, bem escondidinhos, acanhadinhos, eles vão a cada semana nova da pesquisa Focus, refazendo as projeções. Ao longo do ano, se você perceber, é paulatino: o que era 0,8 vira 2%, 3%. Agora, quem acompanha a cada semana, como eu faço, o resultado da projeção do mercado, com várias aspas, está vendo que eles estão adaptando o seu desejo e a sua incapacidade de projeção à realidade do país.
Então, não tem nenhum segredo mágico. O que existe é uma incapacidade de fazer projeções corretas, porque eles estão num clube seleto e fechado, que todo mundo se fala e se conversa, porque todos eles são dirigentes de bancos, dirigentes de instituições financeiras.
(por Cezar Xavier)