Palestino socorre criança ferida após bombardeio de Israel em Rafah, ao sul da Faixa de Gaza | Foto: Mohammed Abed/AFP

Em entrevista à Rádio Sputnik, Ramzy Baroud, escritor, editor do Palestine Chronicle e pesquisador sênior do Center for Islam and Global Affairs, denunciou que a política israelense sempre se baseou na negação da Palestina e dos palestinos como conceito, para justificar a perpetração de toda e qualquer ação contra o povo palestino.

Baroud disse que o atual ataque de Israel a Gaza foi totalmente sem precedentes, mesmo em termos de suas brutalidades passadas, incluindo a “Nakba” ou “catástrofe” de 1948, quando 700 mil palestinos foram forçados a deixar a terra que se tornou Israel e 15 mil foram mortos.

“Nada, nada disso foi vivido” antes, ele disse, relatando ter vivido num campo de refugiados de Gaza até aos 20 e poucos anos. “Vivemos a Primeira Intifada, a primeira revolta, vivemos mortes, guerras, bombardeamentos, vivemos tudo. Mas, mesmo para essa geração, isso é completamente inédito.”

NUNCA VIMOS NADA ASSIM

“Acho que nunca vimos nada assim, mesmo durante a Nakba, a catástrofe palestina de 1947-48. Sim, vimos massacres, mas não vimos uma situação em que você tenha 2,3 milhões de pessoas colocadas dentro de uma área confinada, cercadas pela marinha, pelo exército, por tanques, por drones, por tudo o que a defesa aérea americana é capaz de oferecer. E que estão sendo alvejadas aleatoriamente, sem avisos, incluindo escolas, hospitais, casas – qualquer coisa que você possa imaginar. Não há zona segura. E então, com o tempo, começou a haver fome.”

“Israel está tentando transmitir a mensagem aos palestinos de que ‘ainda está no comando’”, assinalou Baroud. “Estão tentando criar esta ilusão de que o que aconteceu a 7 de Outubro não aconteceu e que Israel continua a ser o exército invencível que sempre foi. Então, para transmitir essa mensagem eles tiveram que matar todas essas pessoas”.

MORTOS JÁ SÃO 1% DA POPULAÇÃO

Quinze mil pessoas morreram até agora, ele destacou. Há ainda os desaparecidos, muito provavelmente mortos sob os escombros. “Se você combinar esses dois números por si só – esqueça os feridos e esqueça todos os outros – isso é cerca de 1% de toda a população de Gaza que foi morta. Um por cento.”

Mais corpos estão sendo recuperados, há quase 40.000 pessoas feridas, o Programa Mundial de Alimentos diz que 2,2 milhões da população de Gaza precisam urgentemente de alimentos, registrou o acadêmico. “Eles não têm comida. Toda a população de Gaza está entre 2,2 e 2,3 milhões. Isso significa que praticamente todo mundo em Gaza não tem comida nem água limpa”.

“Então, isso é completamente inédito. E, no entanto, políticos e autoridades norte-americanas estão se perfilando com o mesmo coro todos os dias: ‘Israel tem o direito de se defender’. Isto é aterrador, na medida em que os palestinos mostraram claramente que estão dispostos a ir até ao fim para lutar pelos seus direitos”.

SEM PONTO DE RUPTURA MORAL

Mas não parece – ressaltou Baroud – “haver um ponto de ruptura moral para os norte-americanos”.

“Esta é a verdade disso. Se Israel fez tudo isso e destruiu 60% de todas as casas em Gaza, e os norte-americanos ainda não acordaram para a ideia de que isso é realmente ruim e isso precisa parar, isso significa que os norte-americanos não têm nenhum limite moral que não possa ser ultrapassado. E isso é o que é verdadeiramente aterrorizante em tudo isso.”

“E não é como se nada disso fosse novo nos EUA”, disse Baroud. “Quer dizer, livros, volumes escritos sobre isso não só por historiadores palestinos como eu, mas também por historiadores israelenses, como Ilan Pappe, por exemplo.”

DESUMANIZAÇÃO

“Esse processo de desumanização – recentemente, escrevi um artigo sobre a história da linguagem genocida em Israel, isso acontece há 75 anos”, ele advertiu.

“Quando você luta contra um inimigo e desumaniza esse inimigo ao mesmo tempo, você cria aquela mentalidade de que quando você está pronto para se livrar completamente desse inimigo, isso não se registra como um ato imoral.”

“TERRA VAZIA”

“É por isso que os israelenses, desde o início, por exemplo, antes de Israel se estabelecer sobre as ruínas da Palestina em 1948, durante décadas, eles criaram essa narrativa de que a Palestina é uma terra vazia, é uma terra sem povo, que deveria estar disponível para um povo que não tem terra. Então, toda a estrutura de Israel, estrutura moral, foi baseada no pressuposto de que os palestinos não existem.”

“E essa versão dos acontecimentos já se repetiu tantas vezes. Por exemplo, Golda Meir, a primeira-ministra israelense nos anos 60, fez esse comentário em uma entrevista ao The Sunday Times em 1969, quando disse ‘não que houvesse um grupo de pessoas vivendo aqui se chamando palestinos, e nós viemos e os expulsamos. Nunca existiram’”.

LINGUAGEM GENOCIDA

“Agora, há poucos meses, [Bezalel] Smotritch, o ministro das Finanças israelita de extrema-direita, esteve em Paris a dar uma palestra em que disse que os palestinos são ‘um povo inventado’. Então, 75 anos e ainda há essa linguagem genocida, esse apagamento completo dos palestinos”, denunciou Baroud.

“Agora, por que isso é funcional, e é isso que eu argumentei no artigo, é porque quando a guerra começou e os israelenses começaram a tentar convencer o Egito e a Jordânia, por meio da mediação norte-americana, a aceitar milhões de palestinos que seriam expulsos de Gaza e da Cisjordânia, eles imediatamente recorreram a essa ideia de que a única solução é trair os palestinos. É aí que o genocídio se torna funcional. Porque não foi totalmente surpreendente para ninguém, porque é o que eles têm dito.”

LIMPEZA ÉTNICA À LUZ DO DIA

“Em Israel eles têm um termo diferente para isso: não chamam de limpeza étnica, chamam de transferência de população”, sublinhou Baroud. É – ele acrescentou – uma maneira educada de dizer “expulsem todos os palestinos de sua própria pátria histórica na qual vivem há milhares de anos”.

“E os norte-americanos, não só não foram neutros quanto a isso e não disseram ‘não, recue, que absurdo é esse, estamos vivendo no século 21, não podemos estar permitindo isso’. Não, [o secretário de Estado dos EUA] Antony Blinken vai ao Egito e oferece a Abdel Fattah al-Sisi, o presidente egípcio, dinheiro para que ele aceite temporariamente 1 milhão ou 1,5 milhão de palestinos de Gaza.”

“E nós sabemos, eu mesmo sou um refugiado palestino, sabemos que no momento em que você cruza a fronteira para fora da Palestina, você nunca pode voltar. Então, basicamente, eles queriam criar outra Nakba, outra transferência de população, se quiserem, e os palestinos não vão voltar. Então eles não iriam perturbar a suposta existência pacífica do Estado de Israel.”

Fonte: Papiro