Milei começa a testar limites da democracia na Argentina
Passados 40 anos do fim de seu regime militar, a Argentina tem novamente à frente da Casa Rosada um líder de feições autoritárias. Mas, diferentemente de Jorge Rafael Videla (1976-1981), Roberto Eduardo Viola (1981-1981), Leopoldo Galtieri (1981-1982) e Reynaldo Bignone (1982-1983), Javier Milei é civil e chegou ao poder pelo voto popular.
A posse do novo presidente argentino, no último domingo (10), abriu um desses períodos em que, como diria o grande mestre do xadrez Aaron Nimzowitsch, “a ameaça é mais forte que sua execução”. Donald Trump e Jair Bolsonaro (no Brasil) tentaram seguir essa cartilha – até a invasão do Capitólio, nos Estados Unidos, em 2021, e os atos do 8 de Janeiro, no Brasil, em 2023. A tentação golpista falou mais alto quando a reeleição desses extremistas não se consumou.
O governo Milei – que prometeu um “choque” econômico na posse – anunciou seu “pacote motosserra” dois dias depois, com nove medidas celebradas pelo setor rentista. Os trabalhadores e o setor produtivo vão pagar a conta, mas o FMI (Fundo Monetário Internacional) rasgou elogios à “audácia” da nova gestão. A banca, cérebro da grande mídia, sabe cultuar e blindar qualquer governante pró-austeridade.
Só que Milei não é apenas mais um neoliberal prêt-à-porter, um fruto argentino de época, como foram os ex-presidentes Carlos Menem (1988-1999) e Mauricio Macri (2015-2019). Muito mais à direita do que esses antecessores seus, o atual mandatário começa a testar os limites da democracia na Argentina.
O primeiro alvo é o movimento sindical, ao qual o “mileísmo” pretende amordaçar e tutelar. Em seu discurso de posse, o próprio presidente pregou um “novo contrato social” para “um país distinto”, onde “aquele que faz paga por isso”. Agora, segundo Milei, “quem bloqueia a rua, violando os direitos dos seus concidadãos, não recebe assistência da sociedade”.
A ameaça genérica ganhou mais concretude na quinta-feira (14), tendo como porta-voz a ministra Patricia, Bullrich, da Segurança. Terceira colocada na eleição presidencial e uma das principais apoiadoras de Milei no segundo turno, Bullrich assumiu o figurino do chefe e anunciou um “protocolo para a manutenção da ordem”. Supostamente em nome da “liberdade de circulação”, greves e manifestações não podem mais bloquear vias públicas, sob o risco de serem reprimidas até pelas Forças Armadas, a depender da vontade dos governantes.
“Utilizaremos a mínima força necessária e suficiente, a qual será graduada de forma proporcional à resistência. As quatro instâncias federais – além do serviço penitenciário federal – intervirão contra a interrupções de vias, piquetes ou bloqueios, sejam eles parciais ou totais”, advertiu a ministra.
Para Bullrich, “a lei não se cumpre pela metade – cumpre-se ou não se cumpre”. Aonde isso vai dar? “Saibam que, quando se tomam as ruas, há consequências. Vamos pôr ordem no país, para que o povo possa viver em paz”, enfatizou a ministra. Os organizadores deverão bancar todos os custos relacionados à segurança. O clima de terror é de tal proporção que crianças e adolescentes estão proibidos de participar de qualquer protesto.
O teste inicial está previsto para quarta-feira (20), data em que ocorrerá a primeira grande manifestação, em Buenos Aires, contra as medidas austericidas e autoritárias da administração Milei. Mais de 50 mil pessoas são esperadas. “A ‘liberdade de circulação’, para eles, é pura falácia”, disse ao Clarín a ex-presidenciável de esquerda Myriam Bregman. “Todas as medidas tomadas pelo governo são um profundo ataque às condições de vida de milhões de pessoas. Daí a urgência e a gravidade dos anúncios de Bullrich.”
Em Podres Poderes, Caetano Veloso denunciou a “incompetência” de nosso continente, “que sempre precisará de ridículos tiranos”. A música é de 1984 e remete aos ditadores que infestavam o Cone Sul. Ao menos na Argentina, a escaldada da criminalização do movimento social e da própria democracia não difere dos princípios de antigos tiranos – alguns devidamente processados, condenados e punidos.
Mesmo sem base de apoio suficientemente organizada no Congresso do país, Milei paga para ver, como se visasse a uma administração autocrática, à moda do húngaro Viktor Orban. Uma vez que os ataques se dirigem apenas ao sindicalismo, há um certo silêncio da direita, do mercado e da mídia. Nada indica, porém, que a ofensiva atingirá apenas a luta dos trabalhadores. Até quando haverá silêncio?