Javier Milei | Foto: Getty Images

Reunido com os ministros, Milei anunciou em rede nacional o pacote com cerca de 300 medidas que entregam ao “mercado”, isto é, aos cartéis e monopólios, o controle absoluto do país e da atividade econômica. Ao mesmo tempo, em que retira de campo o árbitro, o Estado, para impor a lei da selva sobre a economia e a sociedade argentina.

Entre as violações que passariam a valer desde já, e até que o Congresso confirme ou rejeite, está o fim da lei de aluguéis, o fim da regulação para o comércio ou planos de saúde, a eliminação da política de controle de preços previsto na Lei de Abastecimento, assim como de restrições às exportações (que visavam priorizar o mercado interno).

Com o chamado “Decreto de Necessidade e Urgência” (DNU), instrumento só aplicável em situações de calamidade em que o Congresso não tenha condições de deliberar, Milei pretende privatizar geral as empresas públicas e vender sem limite terras a estrangeiros. Os clubes de futebol, que são entidades com jurisdição especial na Argentina, também poderão se converter em Sociedade Anônima (S.A), e são postas na fila para a desnacionalização. Mesmo o Observatório de Preços do Ministério da Economia seria revogado, se aprovado.

Especialista em Direito Trabalhista e Previdenciário, o advogado Juan Manuel Ottaviano destacou que as medidas do DNU representam “o empobrecimento total do emprego formal e informal no país”. Para o pesquisador, que dirige a área de Futuro do Trabalho da Ouvidoria da Cidade de Buenos Aires, um decreto de características tão perversas só foi aplicado durante a ditadura de 1976, “que modificou a Lei do Contrato de Trabalho atacando o direito de greve, o direito de atividade sindical e de sindicalização”.

Apesar de apoiar Milei e concordar com algumas das medidas propostas, o professor de direito constitucional da Universidade de Buenos Aires, Daniel Sabsay, alertou que de acordo com a Constituição, “o presidente não pode editar disposições de natureza legislativa, salvo quando circunstâncias excepcionais impeçam o procedimento normal para a promulgação de leis”.

“Circunstâncias excepcionais”, esclareceu, são fenômenos como um terremoto ou tsunami, o que não é o caso. “Não lembro de uma coisa assim nem na época do ex-presidente Carlos Menem, nem no governo militar”, asseverou. Diante disso, alertou Sabsay, é importante esclarecer que matérias de cunho penal, fiscal, partidos políticos e eleitorais “jamais” poderão ser objeto de DNU.

Na avaliação do advogado constitucionalista e professor na Universidade Nacional de Córdoba, Antonio Maria Hernandéz, “o Poder Executivo não pode em nenhum caso, sob pena de nulidade absoluta e insanável, emitir disposições de caráter legislativo”. A questão é que “o Executivo, num ato de claro abuso de poder, avançou sobre as atribuições exclusivas do Poder Legislativo”.

“ATROPELO À CONSTITUIÇÃO”

Liderados pelo governador de Buenos Aires, Axel Kicillof, vários governantes do Partido Justicialista (Peronistas) levantaram a voz de imediato, denunciando que Milei afrontou até mesmo a “divisão de poderes” ao anunciar o DNU. “Um decreto que sem necessidade ou urgência procura revogar um conjunto de leis de todos os tipos para privatizar, desregulamentar, destruir os direitos dos trabalhadores e arrasar com setores inteiros da produção, rifar os times de futebol e o patrimônio dos argentinos. Tudo isso, sem passar pelo Congresso, que poderia se reunir e discutir. Só lhe faltou dizer: ‘democracia: fora!”, rechaçou Kicillof.

O governador de La Rioja, Ricardo Quintela, definiu o DNU como “um genocídio social” e sublinhou que “não vamos negociar nem ser participantes destas medidas que vêm para tomar de assalto direitos populares de todos e todas”.

Para o governador do Pampa, Sergio Ziliotto, o presidente e sua equipe “decidiram subverter a Constituição para impor um regime cujo principal objetivo é concentrar ainda mais a riqueza com os poderosos”.

“São medidas preocupantes, pois o Estado começa a se afastar de funções que tinha justamente para proteger os mais fracos”, ressaltou o governador de Tucumán, Osvaldo Jaldo.

A direção do Partido Justicialista apontou que “o DNU de Milei é nulo e inconstitucional, sobrecarrega as instituições da democracia, destrói as pequenas e médias empresas e abdica da soberania nacional”. Em suma, “decretou mais angústia, pobreza e desemprego para a Argentina”.

O Partido Socialista também exigiu a “retirada urgente do DNU” e que o texto seja enviado ao Congresso para debate em “um ou vários projetos de lei”.

Até mesmo setores do Proposta Republicana, partido de direita, se manifestaram contrários ao DNU, fazendo com que a ministra da Segurança, Patricia Bullrich, intercedesse a fim de que reconsiderassem a crítica, pois o país estaria “em emergência”.

CENTRAIS MARCHAM UNIDAS CONTRA DNU DE MILEI 

De forma conjunta, a Confederação Geral do Trabalho (CGT), as centrais dos Trabalhadores da Argentina (CTA-Autônoma e CTA-T) e a União dos Trabalhadores da Economia Popular (UTEP) voltam às ruas na próxima quarta-feira, marchando até os Tribunais para apresentar um projeto de proteção ao DNU.

O secretário-geral da CGT, Héctor Daer, assinalou que diante da sucessão de atropelos realizados por Milei, o governo mal iniciou e já se vislumbra um “clima de greve geral”, com milhares de pessoas indo às ruas para dizer não ao “austericídio”. “Vamos unificar um critério com o bloco de deputados da União Pela Pátria. Temos que exigir que isso seja revertido rapidamente em termos políticos e vamos levá-lo à Justiça”, explicou.

Conforme Daer, a utilização da DNU para revogar leis e artigos de tamanha envergadura se revela profundamente “anti-republicana” e “antidemocrática”. “A estabilidade no emprego, os direitos laborais e o sistema de saúde são fortemente atacados”, apontou. Colocar as empresas pré-pagas em igualdade de condições com as obras sociais significa uma desregulamentação absoluta a favor de quem tem dinheiro para ter um monopólio”, apontou.

Para o secretário-geral da CTA Autônoma, Hugo “Cachorro” Godoy, esta ação conjunta expressa a unidade dos mais amplos setores contra um projeto que “viola centenas de leis e é inconstitucional” para satisfazer uma pequena oligarquia vende-pátria. Nesse sentido, alertou Godoy, “se o decreto fosse aplicado seria uma bomba de nêutrons que devastaria toda a economia argentina e explodiria, inclusive, o próprio Congresso”. E alertou: “a soberania e a justiça social não devem ser motivos de desqualificação, como pretende o atual governo, mas sim pilares desta sociedade”.

O líder da CTA dos Trabalhadores e deputado nacional, Hugo Yasky, frisou que “os ricos estão de festa” enquanto “para milhões de pessoas será um inferno viver na Argentina”. “O que está acontecendo é inadmissível, porque nem na época da ditadura chegamos tão longe”, condenou Yasky, frisando que “os argentinos não se deixarão levar pela arrogância ou pela repressão”.

Para a dirigente da UTEP, Dina Sánchez, o princípio unitário está claro: “Se tocam em um, tocam em todos”. “O povo argentino reage e demonstra isso dia após dia. Temos que acompanhar a reação popular”, assinalou Dina, acrescentando que “estamos construindo espaços de unidade com muito mais força desde 10 de dezembro”, quando Milei tomou posse.

Fonte: Papiro